Em Novembro de 2002, participando no VI CONGRESSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, coube-me apresentar uma comunicação inserida na temática geral do evento – O MINISTÉRIO PÚBLICO E AS JURISDIÇÕES NACIONAIS EM MUTAÇÃO –, que intitulei, “O MINISTÉRIO PÚBLICO E A JURISDIÇÃO LABORAL (ou em versão mais realista, o Ministério Público e o Direito dos Pobres)”.
A dado passo do texto de suporte, escrevi:
«1.1 É sabido que hoje em dia, mais do que nunca, toda a comunidade se sente apta e legitimada a discutir todo e qualquer assunto da vida pública, entre eles e com particular apetência da comunicação social o da justiça em geral e do Ministério Público em particular. Tal vocação é a todos os títulos legítima, desde logo porque se trata de discutir um assunto relativo ao exercício de um poder, aparente ou real pouco importa, que, como todos os outros, deve estar sujeito ao escrutínio público. Também, portanto, quanto ao Ministério Público se justifica essa atenção e pronunciamento porque, apesar de algumas estéreis resistências, ele participa constitucional e legalmente do poder judicial.
Só que, antes de mais, todos temos que nos entender sobre a questão prévia do Ministério Público que queremos, daquele que temos e daquele que, sob a capa da legítima apreciação e crítica da sua actuação concreta, nos querem impingir.
É sabido, na verdade, que mesmo entre nós, profissionais do foro e da magistratura do Ministério Público, há cada vez mais vozes que defendem o acantonamento desta magistratura na área criminal, considerada a rainha das suas atribuições, relegando para segundo plano, ou afastando mesmo do leque das suas competências, qualquer outro tipo de intervenção.
Essa pretensão tem assumido contornos mais nítidos e insistentes relativamente a algumas áreas, entre as quais se destacam as da defesa dos interesses privados do Estado e a do patrocínio dos interesses sociais/laborais dos trabalhadores e seus familiares, sempre sob o pretexto de defender a natureza de magistratura do Ministério Público e do rigor do princípio que reservará aos advogados qualquer patrocínio que tenha em vista a defesa de interesses particulares, por natureza, acrescenta-se, incompatível com a ideia de isenção e imparcialidade característica de toda a magistratura.
É esse o pretexto, mas desconfio que na realidade tal pretensão tem na base uma preocupação mais ligada à defesa de interesses económicos e de sobrevivência da uma certa classe profissional, desconfiança reforçada pelo facto de essa reivindicação por parte dos advogados ser recentíssima e logo apontada como solução para alargar as saídas profissionais dos milhares de licenciados em Direito que todos os anos entram no “mercado de trabalho”. Só que, também entre os magistrados, mesmo de alguns que exercem funções nessas áreas, se reivindica de modo crescente o abandono pelo Ministério Público das tarefas correspondentes, com base em argumentos semelhantes aos da advocacia.
Há muito que me bato contra essa visão do Ministério Público, por convicção e com argumentos que creio terem sustento na Constituição da República Portuguesa e na Lei: seja porque a heterogeneidade de funções daquela magistratura em Portugal constitui talvez a sua principal marca genética e distintiva das congéneres europeias e mundiais, que, de resto, tem resistido sem contestação a todas as alterações legislativas, mesmo as que profundamente revolucionaram o nosso ordenamento jurídico na sequência do 25 de Abril; seja porque facilmente se detecta no conjunto das atribuições legais do Ministério Público português uma base comum, consubstanciada precisamente na defesa da legalidade democrática, em que se inscrevem todas aquelas múltiplas e por vezes conflituantes funções, que, em última análise, visam defender o interesse público que lhes subjaz.
No caso dos trabalhadores e seus familiares, esse interesse público consiste na consideração de que se trata de classe particularmente vulnerável, social, económica e contratualmente, e de que nesse campo estão em causa também direitos, liberdades e garantias, em suma, direitos fundamentais, justificativos de um especial empenhamento público na sua defesa e promoção, tentando assegurar a igualdade real de todos perante a lei, nomeadamente através da disponibilização de uma garantia acrescida como pode ser a daquele patrocínio.
Esta posição, que continuo convictamente a defender, recusando, portanto, as teses que levariam à americanização do Ministério Público português, tem suporte filosófico, jurídico e legal, corresponde ao modelo consagrado nas leis vigentes e deve, coerentemente, levar à afirmação de que tais atribuições, como todas as demais de que a lei nos incumbe ou venha a incumbir, exigem profissionalismo no seu exercício.
2. Afigura-se, pois, indiscutível que na jurisdição laboral devem manter-se todas as atribuições que ao Ministério Público estão cometidas de acordo com o respectivo Estatuto e as leis processuais pertinentes, incluindo, como é óbvio, as que ali se apresentam como sua nota singular, ou seja, as de patrocínio dos trabalhadores e seus familiares por questões de cariz social/laboral, cujas características e modo de exercício tive já oportunidade de desenvolver noutros eventos e se encontram registadas em escritos publicados, que aqui me escuso de reproduzir, para eles remetendo os eventuais interessados.»,
e, mais à frente,
«4. Estou, efectivamente, convicto de que a manutenção do Ministério Público na jurisdição laboral, pelo menos com o leque de competências em que hoje se encontra investido, mesmo que permaneçam intocados os respectivos fundamentos, depende essencialmente da formação séria dos seus profissionais e da assunção responsável das suas atribuições.
Tal convicção é reforçada pelas acrescidas exigências que o momento actual nos coloca.
Na verdade, as recentes e profundas alterações legislativas ocorridas no âmbito do direito do trabalho e as que se anunciam de igual ou superior magnitude, quase todas com implicações imediatas na actuação directa e quotidiana do Ministério Público na correspondente jurisdição (para se ter uma ideia da dimensão das alterações, tenham-se em vista, v.g., o novo regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, o novo Código de Processo do Trabalho, o novo regime das contra-ordenações laborais e as anunciadas reformas ao nível do processo executivo e do Código do Trabalho), bem como fenómenos resultantes da progressiva integração no espaço comunitário, também ao nível normativo, e da crescente imigração, em particular da ilegal (que sistematicamente nos confronta com o dilema de decidir entre o dever de patrocínio e o da prisão ou da comunicação aos órgãos de fiscalização competentes), apresentam-se como novos desafios a que só conseguiremos dar adequada resposta apostando sem tibiezas no profissionalismo da nossa intervenção, que, por sua vez, demanda formação contínua de qualidade.
Todavia e apesar de quase todas essas alterações serem contemporâneas da colocação de procuradores da República nos tribunais do trabalho, muitos deles ou a sua grande maioria oriundos de outras áreas de exercício profissional, quais foram as acções de formação preparadas e facultadas a esses magistrados pelos competentes órgãos de gestão do Ministério Público?
E que avaliação do funcionamento do sistema, através dos elementos estatísticos disponíveis ou pela via do sistema inspectivo, foi já efectuada para reprogramar a intervenção do Ministério Público nessa jurisdição?
Nada de nada, se exceptuarmos as acções de formação, essencialmente jurídica, proporcionada pelo CEJ a todos os magistrados, sem carácter obrigatório e quantas vezes até com entraves na frequência por parte do CSMP.
Não admira, por isso, que a referida impressão, mais do que certeza, sobre o decréscimo de qualidade na prestação do Ministério Público nesta jurisdição, tenda a agravar-se e a sedimentar-se no espírito de todos quantos genuinamente se preocupam com estas questões e se transforme mesmo em bandeira daqueles que espreitam a melhor oportunidade para ocuparem o lugar vazio, quando finalmente, com justificação assente na ineficácia e ineficiência da nossa actuação, a lei nos retirar as principais competências de que agora ali nos incumbe, mais uma vez, estou certo, em prejuízo dos mais desfavorecidos e que, afinal, são a razão de ser da nossa profissão, constituindo mesmo elemento básico da sua matriz, na qual me revejo e que me fez optar por esta magistratura.
5. Sou por natureza optimista, pelo que, apesar do tom descrente desta oratória, acredito ainda ser possível inverter os termos da questão em favor da manutenção da intervenção do Ministério Público na jurisdição laboral tal qual ela se encontra hoje legalmente desenhada.
Basta, para tanto, que todos nos consciencializemos das nossas responsabilidades e actuemos com o máximo rigor e profissionalismo, reivindicando ao mesmo tempo das instâncias competentes os recursos necessários à progressiva melhoria do nosso desempenho.
Todos beneficiaremos: a comunidade e os trabalhadores, porque melhor poderão ser defendidos valores de interesse e ordem pública; os advogados e o sistema de apoio judiciário, porque a melhoria das respectivas “performances” acentuará o carácter subsidiário e supletivo do patrocínio do Ministério Público, podendo mesmo torná-lo inoperante; os magistrados do Ministério Público, porque não dizê-lo, que assim manterão aberta mais uma porta de progressão na carreira, mesmo que, como propugno, ela seja condicionada ao preenchimento de requisitos prévios para além dos da antiguidade e da classificação.
Manter-me-ei atento e disponível para essa luta, mas sempre no escrupuloso respeito pelo primado da lei, pois, como alguém dizia, “ao legislador cumpre definir os princípios e aos magistrados pô-los em prática”, mesmo não os vendo (aos magistrados), que não vejo, como simples mensageiros da lei.»
Não tenho quaisquer dotes de prestidigitação, mas havia algo de premonitório em tais considerações, apesar da esperança manifestada na conclusão.
Na verdade, continuando válidas quase todas as ideias ali desenvolvidas (extensíveis a outras jurisdições como a da Família e Menores), com razões acrescidas face aos resultados do inquérito mundial realizado pela OIT sobre a segurança económica dos trabalhadores, em que Portugal aparece colocado no oitavo lugar entre 90 países escrutinados, mau grado se assinalar aos trabalhadores portugueses algum défice na exercitação dos respectivos direitos, para cuja minoração o patrocínio do Ministério Público podia contribuir e tem contribuído, o legislador entendeu de modo diferente e parece ter dado uma definitiva machadada naquelas esperanças com a publicação e entrada em vigor da LEI N.º 49/2004, DE 24 DE AGOSTO, QUE DEFINE O SENTIDO E ALCANCE DOS ACTOS PRÓPRIOS DOS ADVOGADOS E DOS SOLICITADORES E TIPIFICA O CRIME DE PROCURADORIA ILÍCITA.
É certo que o estatuto do MP, lei de valor reforçado, continua a prever aquela função de patrocínio dos trabalhadores, o mesmo fazendo o Código de Processo do Trabalho, função cuja execução pressupõe aquilo a que Vítor Ribeiro chamava de pré-patrocínio, aí se incluindo o serviço de informação e aconselhamento jurídicos.
Porém, tendo em conta o teor do articulado daquela Lei, em que se definem os actos próprios dos advogados e dos solicitadores e se reserva aos profissionais de cada uma destas categorias inscritos nas respectivas Ordem e Câmara a exclusividade da sua prática, é, no mínimo, discutível que os procuradores da República junto dos tribunais do trabalho possam continuar a desempenhar aquelas atribuições de pré-patrocínio e de patrocínio dos trabalhadores e demais entidades previstas no CPT, sendo mesmo de questionar se o seu eventual exercício não os fará incorrer na prática das infracções contra-ordenacionais e criminais ali previstas.
Eis, pois, como de um modo silencioso, quase insidioso, e sem discussão pública se privou uma parcela significativa da nossa população de um serviço gratuito, pouco oneroso para o Estado e com provas dadas na busca de uma sociedade mais justa e equitativa.
João Rato
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