publicado em 16 Jul 2013 - 05:00
Negociar com medo não é, todavia, negociar. Só pessoas livres e
iguais em direitos podem negociar de verdade
1. Vivemos um tempo em que o medo parece ter-se instalado de novo,
com um papel relevante na vida da sociedade.
Não se trata já do medo de um inferno eterno, que será vivido num
outro mundo. O medo actual é um medo que se vive dia-a-dia, nesta terra, neste
tempo e no tempo que imediatamente se lhe há-de seguir, tanto para nós como
para os nossos filhos.
O esforço que antes - pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial -
foi feito para ir gradualmente erradicando o "medo inútil" da vida
quotidiana dos homens parece ter ruído de repente.
Tudo em nosso redor parece querer agora ressuscitar o medo: o medo
antigo dos nossos pais.
Inculcar este medo parece ser a substância, o meio e o propósito
da cultura dominante. O cinema e a TV retratam permanentemente medos irreais e
distantes ou medos presentes, e porventura reais, que em comum têm sempre a
capacidade de se agravar, sem vislumbre de solução ou de remédio.
O romance policial actual - a literatura realista dos nossos dias
- invoca quase sempre o fenómeno do crime como obra de poderes ocultos, mais ou
menos institucionais, que comandam, sem controlo, a sociedade. E quando, mesmo
assim, esta literatura premeia o detective com a verdade revelada, não deixa de
explicar que por fim essa verdade sairá sempre vencedora.
O recente caso da denúncia, comprovada, da violação global das
nossas comunicações por entidades oficiais da maior potência mundial apenas
confirma, assim, as mais irrealistas literatura e ficção cinematográfica.
2. A mensagem política do mundo actual é, também ela, de novo, uma
mensagem de medo.
Já ninguém nos diz que vale a pena o esforço para que num futuro
mais ou menos próximo possamos viver melhor e mais seguros e que os nossos
filhos - "esses sim!" - terão já a vida com que sempre sonhámos.
O futuro é-nos oferecido sempre negro, mais ou menos negro.
"Tens de te sacrificar agora, um pouco, um pouco mais, pois de outro modo
será pior: terás logo de sacrificar tudo!" - é esta a mensagem.
Este medo e esta mensagem inibem, conduzem à desconfiança, ao
egoísmo, à fraqueza, à solidão.
Este medo rouba a alegria de viver livre em sociedade: mata a
liberdade, mata a solidariedade, mata a sociabilidade. Mata!
O medo justifica a extorsão e pretende mesmo levar a vítima a
negociar o próprio roubo com o extorsionário.
Por isso ele acobarda, avilta e envergonha quem o sofre e oculta:
aniquila a personalidade dos que o sofrem e o aceitam.
Em "Una misma noche", o escritor argentino Leopoldo
Brizuela relata-nos bem esse medo e o efeito social que ele pode assumir em
cada momento e para qualquer fim politicamente útil.
A dado passo, referindo-se aos tempos da ditadura, diz o narrador,
que procura esconjurar o medo ressurgido e os seus mecanismos: "? de
alguna manera, aquella noche nosotros negociamos, porque toda negociación,
quita pureza, o por lo menos recuerda la impureza de sobrevivir".
Negociar com medo não é, todavia, negociar. Só pessoas livres e
iguais em direitos podem negociar de verdade.
Subtrair direitos, desqualificar estatutos, reduzindo assim o
poder de que cada um dispõe para continuar a estabelecer os compromissos que
permitem uma vida justa e em paz é pois mais do que uma simples opção de
competitividade económica, uma estratégia potenciadora do medo e da submissão a
que este sempre conduz.
Ter a percepção do significado e do papel do medo actual é, isso
sim, o primeiro passo para o vencer.
Jurista e presidente da MEDEL
Escreve à terça-feira
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