sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

As responsabilidades da Justiça



Francisco Teixeira da Mota

A Justiça esteve, nos últimos dias, "nas bocas do mundo", por razões muito diversas. A nível de cúpula da Justiça, daquilo a que podemos chamar a superstrutura do sistema judicial, tivemos mais uma vez a tradicional cerimónia da abertura do ano judicial com os habituais discursos das mais altas figuras. Por outro lado, a nível das bases da Justiça, do funcionamento do sistema judicial em concreto, tivemos dois casos perturbantes respeitantes a menores: o caso da mãe que se viu desapossada dos filhos entregues para adopção contra a sua vontade pelo tribunal de Sintra e o caso da mãe que, na iminência de ser desapossada dos filhos por ordem do tribunal de Cascais, os envenenou, suicidando-se a seguir. No que toca ao ritual da abertura do ano judicial, que tem sempre aspectos sadomasoquistas, para além da simpática notícia cultural da devolução do ex-ribunal da Boa-Hora ao mundo da Justiça, é de salientar, em primeiro lugar, a afirmação do Presidente da República de que "os cidadãos, as empresas e as instituições têm o direito de saber como se administra a Justiça no seu país". Esta afirmação, sendo lapalissiana, não deixa de ser uma verdade que convém sempre ter presente quando se fala da Justiça.

E, nesse aspecto, saúda-se o reconhecimento, pela procuradora-geral da República, da existência de "sinais de menor eficiência e de demasiada morosidade" nas investigações criminais que superintende. Bom seria que, com regularidade, nos fosse dada conta da evolução destes problemas, das medidas tomadas, dos resultados obtidos.

Do discurso do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, saliente-se a sublinhada necessidade de acabar com a existência de tribunais administrativos (onde são responsabilizados o Estado e os seus agentes) e de os fundir com os tribunais comuns, pondo termo a um "foro pessoal do Estado e da Administração à boa maneira da antiga tradição napoleónica". Seria, de facto, um enorme avanço para os cidadãos o fim desta obsoleta componente do sistema judicial. Do discurso do bastonário da Ordem dos Advogados, deixando de lado os aspectos mais mediáticos, parece de realçar a sua coerente defesa do exercício da profissão de advogado e a denúncia do "terrorismo de Estado" de um juiz que "emite um mandado de busca em branco quanto ao seu objecto, ou seja, uma ordem para apreender todos os documentos e objectos que se encontrem no escritório de um advogado e que possam constituir provas contra os seus clientes, incluindo os computadores pessoais e profissionais do advogado". Parece ser um caso concreto... Da parte da ministra da Justiça, realça-se o anúncio de um ambicioso plano para o sistema prisional que permitiria a sua sustentabilidade, podendo reclusos e estabelecimento prisional ter receitas próprias. Uma excelente intenção, mas, como "de boas intenções está o inferno cheio" e "a operacionalização do plano decorrerá entre 2013 e 2015", só podemos dizer da sua qualidade e eficácia em 2015. Se cá estivermos, claro.

Descendo da estratosfera do mundo da Justiça e mergulhando na realidade do quotidiano dos nossos tribunais, tivemos dois casos em que as decisões dos tribunais invadiram profundamente a vida de cidadãos, com resultados controversos ou mesmo trágicos.

No caso da cidadã que se viu desapossada dos seus filhos, a questão que se coloca é a de saber se o Estado foi ousado de mais na defesa daquilo que entende serem os direitos das crianças que lhe cabe proteger; já no caso da cidadã que matou os filhos e se suicidou, a questão põe-se ao contrário, será que o Estado foi tímido de mais na sua actuação, tendo deixado protelar uma situação que já se anunciava como perigosa para os menores?

A verdade é que sobre ambos os casos temos uma informação muito parcelar que não nos permite compreender todas as questões que se levantaram ao longo dos processos e aferir se as decisões que foram sendo tomadas foram correctas ou não. O caso das crianças retiradas para adopção, como se encontra ainda pendente nos tribunais, deve ser tratado publicamente com a maior reserva pelos responsáveis judiciais, como muito bem sublinharam as advogadas da mãe, sendo, no entanto, por demais evidente que a laqueação ou não das trompas não pode ser fundamento de qualquer decisão judicial.

Já no que toca ao envenenamento das crianças e posterior suicídio, nada obsta a que se saiba mais sobre o que se passou e se procurem apurar responsabilidades, se é que elas existem. Como é evidente, ninguém pode ser responsabilizado por um acto demente absolutamente imprevisível, mas seria bom sabermos como tramitou, passo a passo, este processo. Será que o Conselho Superior de Magistratura não quererá contribuir para o exercício do nosso "direito de saber como se administra a Justiça", de que falou o Presidente da República?
Público, 1-02-2013

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