No julgamento do caso de Santa Maria, em que vários doentes
ficaram cegos depois de lhes ser sido ministrado um medicamento, o MP pediu a
condenação de um farmacêutico e de uma técnica de farmácia por ofensas
corporais negligentes. Para tanto, concluiu que os arguidos violaram deveres de
cuidado ao manusear o medicamento e controlar a sua aplicação.
Mas com que fundamentos
jurídicos se pode chegar a esta conclusão? Estando em causa crimes de ofensa
grave à integridade física, não basta que tenha havido uma conduta descuidada e
que a cegueira tenha sobrevindo. É necessário estabelecer um nexo de imputação
entre a violação do dever de cuidado, consubstanciada pela conduta, e a
cegueira.
Assim, se não se puder excluir, cientificamente, que a cegueira
foi causada pelo próprio medicamento, também não se poderá concluir que a
conduta dos arguidos constituiu uma ofensa negligente à integridade física.
Nesse caso, não se teria descortinado a "causa" da cegueira e, por
conseguinte, esse resultado não poderia ser imputado à conduta dos arguidos.
É indispensável, na verdade, uma espécie de nexo de causalidade
adequada (ou de conexão de risco) entre a violação de um dever – observável por
qualquer pessoa com a formação e a experiência dos arguidos – e o resultado
ocorrido. Esse nexo não existirá se subsistirem dúvidas sobre se a cegueira se
teria verificado apesar do cumprimento do dever.
No caso de Santa Maria, a existência de crimes negligentes depende
da identificação de deveres de cuidado que seriam cognoscíveis pelos técnicos
de farmácia, na situação concreta, de acordo com as regras que orientam a sua
atividade. Além disso, terá de se comprovar que a violação do dever de cuidado
é o fator que explica, no plano jurídico, o resultado.
Por outro lado, é necessário verificar se, para os arguidos, o
resultado (ou seja, a cegueira dos doentes) era previsível e evitável. Uma
resposta negativa poderia decorrer do contexto de uma sobrecarga de tarefas ou
de uma divisão do trabalho disfuncional e não responsabilizadora, que gerasse a
confiança em que outros técnicos controlariam a aplicação do medicamento.
Perder a visão é uma tragédia, e a responsabilidade serve para
reconhecer e corrigir erros, evitar a sua repetição e minimizar os danos.
Porém, em Direito Penal, não se admite uma responsabilização objetiva que
converta os arguidos em bodes expiatórios da má organização hospitalar. A
responsabilização depende, no mínimo, da existência de negligência.
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