quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Presidente do STJ critica reorganização dos tribunais feita pelo actual Governo

MARIANA OLIVEIRA 

Público - 31/01/2013 - 00:00
Noronha de Nascimento não concorda com o novo modelo de organização do tribunais, preferindo antes que fosse desenvolvido o do Governo de Sócrates
Foi com um discurso crítico e repleto de mensagens subtis que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Noronha Nascimento, falou na sua última sessão solene de abertura do ano judicial, realizada ontem em Lisboa. O modelo de reorganização dos tribunais proposto pelo Governo de Passos Coelho, parte do qual já está em discussão no Parlamento, mereceu fortes críticas do presidente do STJ, que lamentou que o actual executivo tenha trocado "o certo pelo incerto".
Lembrando que o anterior Governo já tinha avançado com um modelo para o novo mapa dos tribunais, com o lançamento de três comarcas-piloto, Noronha Nascimento lamenta que o actual executivo tenha "mudado o paradigma". E tenha optado por instalar na gestão das comarcas um "sistema híbrido" que se centra numa liderança tricéfala - juiz presidente, procurador coordenador e administrador da comarca.
"A lei de 2008 definia uma liderança bastante clara: o líder da comarca era o juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, a quem reportava os problemas surgidos", defendeu Noronha Nascimento. E acrescentou: "Este sistema funcionou bastante bem nas três comarcas experimentais e o corolário lógico era o seu alargamento ao conjunto do território."
Lamentando que no modelo agora em discussão o administrador judiciário tenha competências próprias, o presidente do Supremo argumenta que tal constitui "uma distorção a um modelo transparente de liderança". E avisa: "Corremos o risco de a prática nos surpreender com uma gestão paralela de três pessoas, com competências, porventura, conflituantes em certas área e com o administrador - ligado ao ministério - a decidir quais os beneficiários dos parques, espaços e equipamentos que podem funcionar como pressupostos do exercício de uma função que tem que ser independente."
Antes de Noronha Nascimento já a nova procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, tinha falado sobre este tema, curiosamente para sublinhar que o novo modelo de gestão das comarcas deve "consagrar uma maior e mais clara participação do Ministério Público no modelo de gestão das futuras comarcas".
Joana Marques Vidal ainda reforçou a importância do "princípio da autonomia enquanto corolário da independência dos tribunais e do funcionamento do Estado de direito democrático", recusando a hipótese de o Ministério Público depender do executivo. "Como igualmente me mantenho afastada dos que, por qualquer forma, advogam a possibilidade de limitar a autonomia desta magistratura, atribuindo àquele princípio, falaciosa e erradamente, a causa do mau funcionamento da Justiça", vincou Joana Marques Vidal.
A magistrada admitiu "sinais de menor eficiência e demasiada morosidade" e defendeu que se deve investir na formação especializada de procuradores e juízes, além de incentivar o trabalho em equipa. "Há igualmente que repensar a ligação entre os departamentos de Investigação e Acção Penal [que investigam os casos mais graves de cada comarca] e o Departamento Central de Investigação e Acção Penal [que investiga os casos mais complexo do país], numa tentativa de planeamento de trabalho que, redefinindo competência próprias de cada um dos departamentos e conjugando sinergias, consiga potenciar as respectivas capacidades no exercício da luta contra a criminalidade", realçou.
Cavaco pede equidade
O Presidente da República, Cavaco Silva, insistiu, por seu lado, na necessidade de não descurar os princípios da justiça e da equidade nos sacrifícios que são pedidos aos portugueses num tempo que classificou "de trabalho árduo".
Até porque, justificou, "quanto maior é a dimensão dos sacrifícios exigidos, maior tem de ser a preocupação de justiça na sua repartição". O Presidente explicaria, de seguida, que só o respeito pelos princípios da justiça e da equidade pode garantir a necessária "coesão nacional", que classificou de "valor supremo".
"Ao contribuir para a garantia da coesão social e da coesão intergeracional, a Justiça é um factor determinante de estabilidade e de paz social", frisou o Presidente.
Assinalando que o actual Governo tem feito um "esforço assinalável" para responder às mudanças na área da Justiça que tinham de ocorrer devido à conjuntura económico-financeira, Cavaco sublinhou que o sistema judicial é o garante da autoridade do Estado e que este deve "assegurar o efectivo exercício de todos os direitos dos cidadãos".
Na sua intervenção, o Presidente falou ainda nas consequências económicas de uma Justiça lenta. "Na conjuntura actual, mais do que nunca, a Justiça deve primar pela eficiência e pela celeridade na resolução dos litígios com incidência económica. Dessa forma, o sistema judicial prestará um contributo imprescindível para a melhoria do clima de confiança e para o crescimento da nossa economia", afirmou.
Também a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, falou dos efeitos da crise na Justiça, no entanto, noutra perspectiva. "Todo o sector da Justiça tem de ser ponderado à luz de novos critérios de exigência", referiu. A ministra sublinhou que as reformas da Justiça "devem estar acima de disputas descontextualizadas e não podem ser usadas como armas de arremesso político-partidário", nem estar subjugadas a "interesses sectoriais ou locais".
Como é habitual o discurso do bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto, foi o mais inflamado, tendo o responsável acusado alguns juízes de tomarem decisões que constituem "um acto de terrorismo de Estado".
"Quando um juiz de direito emite um mandado de busca em branco quanto ao seu objecto, ou seja, uma ordem para apreender todos os documentos e objectos que se encontrem no escritório de um advogado e que possam constituir prova contra os seus clientes, incluindo os computadores pessoais e profissionais do advogado, isto é um acto de terrorismo de Estado", afirmou. E logo depois fez uma advertência aos advogados: "Retirem dos vossos escritórios quaisquer documentos ou objectos que possam incriminar os vossos clientes, pois correm o risco de um juiz ir lá apreendê-los para os entregar à acusação."
O Governo foi o primeiro alvo do bastonário, que acusou o executivo liderado por Passos Coelho de insensibilidade, de ter uma agenda ideológica oculta e de levar a uma política que passa pela "aniquilação dos direitos de quem vive só do seu trabalho" e pela "destruição do Estado social". "[É ] um ajuste de contas com os valores e conquistas mais emblemáticas da revolução do 25 de Abril", realçou.
Denunciou ainda a "fraude em que se consubstanciam certas pretensas formas de justiça". "A justiça faz-se nos tribunais com juízes e advogados independentes e com procuradores e não em centros de mediação ou julgados de paz", afirmou Marinho e Pinto.
O bastonário alongou-se ainda a denunciar o "negócio" das arbitragens em Portugal. "O Estado tem a obrigação de resolver soberanamente os litígios entre empresas e não remetê-las para essa gigantesca farsa que são chamados "tribunais arbitrais", que em muitos casos não passam de meros instrumentos para legitimar verdadeiros actos de corrupção", sublinhou. E acrescentou: "Finge-se uma divergência ou outro pretexto qualquer como um atraso no pagamento do inflacionado preço para que o caso vá parar ao dito tribunal." Qual será a decisão de um tribunal "em que os juízes foram substituídos por advogados escolhidos e pagos - principescamente, aliás - pelo corrupto e pelo corruptor?", perguntou. E, logo em seguida, respondeu: "É óbvio que proferirá a sentença pretendida por ambos e obrigará o Estado ao cumprimento integral da prestação que o corrupto e o corruptor haviam acordado entre si". Uma forma encapotada, disse, de "prejudicar o próprio Estado". com Rita Brandão Guerra

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