O Prado escrevia artigos e livros sobre matérias de Direito. Passara vários meses a preparar aquela obra sobre o «Facto Jurídico», compulsando trabalhos de doutrinadores e arestos dos tribunais. Para ele a Vida consistia no «facto jurídico» e este era uma pequena fatia da Vida, que, uma vez separada do bolo, assumia individualidade absoluta, sofrendo uma autêntica transfiguração. O seu novo livro tinha uma clientela certa, embora limitada, entre os profissionais da mesma arte, o que não era para desprezar, na conjuntura que atravessavam os magistrados que como ele viviam só do ordenado.
Apareceu nesse dia com um cheque assinado pelo editor e com um exemplar do «Facto Jurídico», que desembrulhou paulatinamente. A mulher observou a capa num relance. Depois olhou o cheque de um lado e do outro, cheirando-o e dobrando-o pelo vinco. E disse com prazer: – «Cheira a novo.» Fizeram as contas: quinze contos para o carro e a outra metade «para renovar as coisas» – expressão usada por Berta, o que significava a satisfação impossível de inúmeras necessidades, como a compra de vestuário, calçado e cobertores, o arranjo dos móveis, a compra de mais uma cama e a pintura interior da casa, porque, agora, como juiz de primeira classe, já não tinha direito a habitação e mobiliário, fornecidos pelo Município. Havia ainda a tantas vezes falada lembrança para a tia Madalena, que ambos reconheciam ter sido sempre «uma verdadeira criada da família». Estavam também de acordo na escolha de um automóvel que tivesse «dignidade». Ele explicou que os carros americanos eram mais robustos e que se vendiam por bom preço, embora o seu consumo fosse mais elevado. Mas este factor, para eles, era de somenos importância, porque o carro lhes interessava acima de tudo para as deslocações na altura de férias. O merceeiro do rés-do-chão, além de um automóvel pequeno, possuía um «De Sotto», azul, que aguentava sacos de batata e de cebola e fardos de bacalhau. Berta fez questão que fosse de cor preta. E convinha (prevenção dele) negociá-lo numa garagem distante. A mulher concordou, preocupada também com a identidade do antepossuidor. O homem disse ainda: – «Não precisamos de garagem. Estão caríssimas». Ela perguntou: – «Quanto?» Ele respondeu: – «Aí uns duzentos e cinquenta escudos. E há por aí tantos ao relento». Ela, reticente: – «Sempre deve conservá-los. E não sei que me parece. Temos uma posição, que diabo». Ele não respondeu.
As viaturas encontravam-se alinhadas à esquerda. O Prado avisou o filho, logo à entrada. Deviam estar precavidos, porque «os vendedores de automóveis eram todos uma cáfila». O rapaz disse: – «É um modo de vida como qualquer outro». O Prado ficou mais tranquilo ao verificar que cada automóvel tinha um letreiro impresso, indicativo do preço. Deteve-se junto de um «Chrysler», preto, com vasto espaço entre os bancos, onde existiam ainda duas cadeiras metálicas, articuláveis. O filho disse logo que era «uma banheira sem rolha».
Um homem ainda novo, engaiolado num escritório, aparentou não fazer caso deles, mas não demorou. O juiz disse que a pintura estava «deteriorada». O vendedor falou-lhe num «banho», que ficava barato e o carro como novo, a não ser que preferisse uma pintura completa, que o carro bem merecia. O Prado respondeu: – «Veremos isso depois».
O filho entrou, accionando o motor. – «Está impecável», aguçou o comerciante, apontando o ouvido com o indicador. Sim, gastava «um poucochinho»; não se podia desejar tudo, mas o que garantia é que arrancava «com uma casa em cima». A suspensão era «de primeira» e os cromados «pareciam de cristal». Já não se fabricavam automóveis daquele «estilo», nem na própria América. Os carros modernos eram «uma casquinha». Acrescentou que não gostava de influir na escolha dos clientes, mas tinham ali «um carro de primeira e para uma pessoa de posição».
O rapaz saiu e o pai entrou. O vendedor apontou com a mão aberta: «Veja V. Ex.a este tablier.» Sim, repetiu, já não se fabricava daquilo nem na própria América. Introduziu a cabeça para um aparte: – «Era do embaixador da Venezuela». O rapaz ouviu e perguntou pelo livrete. Ele respondeu que estava na Conservatória.
O Prado saiu do automóvel e disse que o preço «era puxado». O homem respondeu-lhe que «em consciência» ninguém podia afirmar que o custo era exagerado; apesar disso, faria «uma diferençazinha», em atenção ao cliente, que «era conhecido da casa», embora o preço dos carros usados estivesse «muito esmagado».
O rapaz disse que havia outro carro à entrada, mais pequeno, de menor consumo e pouco mais caro. O Prado foi atrás dele, olhou para a etiqueta do preço e ficou mudo. O vendedor também não disse nada. O juiz voltou para junto do «Chrysler». Então o vendedor disse que tanto lhe importava vender um como outro, mas que o que lhe convinha era aquele, – outro aspecto, outra largueza, outra potência e acima de tudo «outra presença». O segundo, além disso, era mais caro. Evidentemente que «quem mandava ali era o cliente» e até não havia necessidade de pagar tudo de uma vez. O Prado respondeu com secura: «Eu costumo pagar a pronto». O comerciante baixou-se um pouco, abriu as mãos e disse: – «V. Ex.a manda». Acrescentou que o automóvel tinha «raça». O Prado voltou a sentar-se ao volante, fechando a porta e desandando a chave da ignição. Oferta definitiva: doze mil escudos. O vendedor disse: – «Pode V. Ex.a ficar certo de que não ganho para o almoço; mas acabou-se».
O filho andou à volta e disse que os pneus estavam «carecas». O vendedor prometeu uns «pneus jeitosos para as rodas da frente». – Isto estava a calhar para uma agência funerária» – acrescentou o rapaz. O comerciante fez que não ouviu. O pai corou.
Entraram no escritório. O comerciante perguntou se o Prado tinha «seguro do outro carro». O juiz disse que não. O filho aconselhou que fizesse o seguro. Eram só mais uns novecentos escudos. Havia também o selo – duzentos escudos. O rapaz achou muito «para um carro de feirante».
Berta ouviu o toque combinado. Foi à janela, seguida pela irmã e pelos filhos. Os vizinhos juntaram-se no passeio fronteiro. Madalena e Berta recuaram, deixando lá as crianças, que aliás se recusaram a abandonar o posto de observação. Reuniram-se mais pessoas junto à farmácia. Tudo o que dizia respeito à vida do juiz tinha para aquela gente um sentido muito especial. Cada vizinho era um espião. Cada gesto do Prado um acontecimento. Este sentia que o colocavam à margem e talvez acima dos outros homens. Apercebera-se até de que, ao ser apresentado a alguém, tudo se modificava quando se inteiravam da sua profissão.
O Prado era um homem a quem confiaram a missão de punir. Os juízes são as únicas pessoas que em condições normais podem decretar a morte do seu semelhante. Quer queiram quer não, têm algo de deuses e de carrascos, conforme o prisma sob que sejam encarados.
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