segunda-feira, 6 de junho de 2011

Ainda a CHANCELA do Conselheiro Sá Coimbra



Em comentário à nota do LC coloquei o texto seguinte, que não resisto a transcrever aqui, de Maria da Glória Padrão sobre aquela obra:


«A CHANCELA
Sá Coimbra
Pardo é Prado. Prado é juiz. Pardo é o juiz. Este juiz que se movimenta nesta narração e de que o narrador se serve para questionar uma forma brutal de poder — o poder dos tribunais.
Pardo é Prado. No universo da relação familiar tipifica a instituição que transporta para o espaço da casa (passado o momento de pitoresco que vive na primeira noite nos Açores) a condição da marca de classe que suporta. É juiz.
Pardo é Prado. No universo da relação social é o voluntária e conscientemente arredado dela, num círculo de estreitamento que lhe castra o gesto do dialogo. Restar-lhe-á o rato necessário para o dizer estereotipado do bom dia. Porque para o espaço da relação com o outro, ele transporta a condição da marca de classe que suporta. Ele é juiz.
Pardo é Prado. No universo da relação profissional, em deambulação geográfica, vai sendo promovido. Por tempo.
Mas também por competência, lato é, por assepsia, meticulosamente cumpridor da lei. Porque no espaço da hierarquia de que depende e sobre que impende, ele transporta a condição da marca de classe que suporta. É juiz.
Pardo é Prado. Agora com toda - a força da superlativação.
No universo da relação superstrutural, não se descola da escrupulosa execução da norma jurídica com a consequente deslocação de valores: os códigos são, acima de qualquer suspeita; os processos são, acima de qualquer cidadão.
O prémio é óbvio: o convite para o tribunal político. Produto de um sistema que nunca põe em causa, automatizando-se numa pretensa e cega independência, começa como vítima dele, sistema, e acaba como vítima de si próprio: por não optar, optam-no. É guarda, castrador de si, do outro, até à morte. Linearmente.
Quando a família sai do cemitério, mudara já o pano de fundo: Venceremos, venceremos, / a batalha da terra e do pão!» É o canto atirado para a rua a derrubar a história que pariu a lei que o juiz cumpriu. Canto colectivo de polaridade oposta ao fado que plana desde os Açores: «Tudo lato é fado.» O jogo oposicional de sons é outra simbologia dos dois momentos históricos em que se processa a diegese.
Mas em tempo de fatalismo já Pedras tem a funcionalidade de contrariar o fado desde os mais rotineiros sinais até à questionação mais profunda do espaço normativo em que se movimenta a forma de poder. Por isso, pretendendo servir o homem, manter-se-á com o labéu de perigoso e deixará de ser nomeado no texto depois da data da transformação. Porque a história do poder começará a ser contada de outro modo!
A narração é ainda um lugar de movimentação de peque nos grandes casos ou acidentes humanos, esferas auxiliares que contribuem para a fixação da impessoalidade do juiz Prado que, apesar do sistema e também por causa dele, vive frequentemente uma crise de identidade de que lhe advém um complexo de culpa presente em alguns dos momentos mais humanos deste texto.
Por isso, o título permite a ambiguidade: chancela será metáfora de sistema, de processo, de sujeito. Só numa perspectiva ele é rígido: nunca metáfora de povo em movimento.»

Sem comentários: