Subtracção de menor - Sequestro agravado - Concurso de infracções - Interpretação das sentenças - Direito ao silêncio do arguido - Dolo - Indemnização - Medida da pena - Suspensão da execução da pena - Imposição de deveres
1 – A Relação, sendo um tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância ou por si, o que constitui igualmente matéria de facto. Essas conclusões ou ilações escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar.
2 – O direito ao silêncio por parte do arguido não é um direito ilimitado e que incide sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar, ou seja, abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito (a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e a questão da culpabilidade, que comporta excepções, como a resultante da al. b) do n.º 3 desse art. 61.º, e o, já referido, dever de responder com verdade às perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais.
3 – Tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio.
4 – Como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, a sentença judicial é ela também susceptível de ser interpretada com recurso às boas regras de hermenêutica, pois não obstante a sua característica de acto de autoridade, designadamente a sua parte decisória, é um acto jurídico declarativo e formal, dirigido às partes e, portanto, susceptível de interpretação, de harmonia com as regras, devidamente adaptadas, consignadas nos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil.
5 – Se no dispositivo do acórdão da 1.ª Instância se escreve que o colectivo de juízes decidiu absolver o arguido da prática como autor material de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1, al. c) do C. Penal, mas na fundamentação da decisão se tiverem por verificados dois crimes: de sequestro agravado e de subtracção de menor, em concurso aparente entre esses dois crimes e concluir neste último sentido, decidindo que o arguido seria só punido «pela prática do crime de sequestro sendo os restantes factos ponderados na determinação da medida concreta da pena, é esta luz que deve ser interpretado o dispositivo.
6 – E se o arguido ao recorrer para a Relação não impugnou a decisão da 1.ª instância quanto à verificação do crime de subtracção de menor, se vier a cair a condenação pelo crime de sequestro, desaparecendo o concurso de infracções, só resta determinar a pena a aplicar por aquele crime.
7 – Mostrando-se preenchidos os crimes de subtracção de menor e de sequestro, verifica-se um concurso aparente a punir no quadro do crime de sequestro.
8 – No crime de subtracção de menor censuram-se agressões ao legítimo exercício dos poderes legalmente definidos para o suprimento da incapacidade dos mesmos – poder paternal e tutela, estabelecendo-se uma dupla protecção: por um lado, em benefício do menor, para que permaneça dentro da sua família, e, por outro, em favor desta, com vista a conservá-lo no seu seio.
9 – Prevêem-se três situações delituosas: subtracção; determinação à fuga por meio de violência ou ameaça de mal importante; ou recusa de entrega do menor a quem esteja legitimamente confiado, isto é: sonegação ou retenção de menor a quem exerça o poder paternal, a tutela ou qualquer outro poder legítimo sobre ele.
10 – Há recusa na entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, por acção do agente sob cujo instável poder se encontra não regressa ao seu poder de direcção e guarda, residindo aqui a tónica criminosa, pois, na retenção sem justa causa.
11 – Estando assente que foi o arguido notificado da sentença judicial que regulou o exercício do poder paternal da menor e determinou, a atribuição ao assistente, pai desta, o desempenho do poder paternal e que, não obstante a interposição, por si, de recurso então não admitido, mas sempre com efeito meramente devolutivo, logo legal e imediatamente obrigatório (art. 185.º da O.T.M.), sempre se recusou a entregar a menor ao assistente, bem sabendo que a isso estava obrigado, verifica-se o crime de subtracção de menor.
12 – O Supremo Tribunal de Justiça, num caso semelhante (AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05), entendeu que se verificava, no caso, concurso aparente entre um crime de sequestro agravado e um crime de subtracção de menor a punir no quadro do crime de sequestro, com o dolo genérico, em relação a este último, a consciência e vontade de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.
13 – Não se ofereceram então dúvidas sobre a verificação do dolo do agente que levara a menor da presença da mãe, que exercia o poder paternal, contra a vontade desta, inesperadamente, para local desconhecido onde a mantém, impedindo os contactos, sem a menor se poder movimentar livremente, através da sua mãe, utilizando-a como instrumento de vingança, sofrimento e dor, contra esta e sua família, procurando, assim, levar a mãe da menor a reatar o relacionamento amoroso, ameaçando-a de, em caso negativo nunca mais voltar a ver a filha. Ou seja, o agente agiu com a intenção de privar a menor da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço, para poder utilizar essa situação como um elemento de pressão que levasse a mãe daquela a realizar um desejo seu (reatamento da vida em comum), condicionada por aquele confinamento.
14 – Mas, tal não acontece, mostrando-se afastado o dolo de seuqestro, quando, como no caso presente, a própria decisão recorrida entendeu que:
– O «arguido previu e quis agir com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor ao assistente, pessoa que sabia que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente (…) Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios»;
– «A circunstância de o recorrente ter recebido a menor da mãe, pouca importância tem, a partir do momento em que nenhuma lei ou decisão judicial conferiu ao arguido e sua mulher o direito de a levar e de a conservar consigo nas circunstâncias em que o fez, desconhecendo se o pai estava de acordo com a entrega e mais tarde, retiveram-na sabendo que fora atribuído o poder paternal ao pai, o assistente»;
– «Por outro, e fundamentalmente, porque o arguido e sua mulher, negaram o acesso dos pais (pai e mãe) à menor não deixando sequer vê-la, não a apresentando ao tribunal nem ás autoridades, agiram como se tivessem a guarda e confiança da menor»;
– Levou-a para local desconhecido, com o propósito de a afastar dos pais. Deste modo quis fazer nascer laços de amor da criança para com eles, com o decorrer do tempo, fazendo-se passar por pais, apagando a personalidade da menor, mudando-lhe até o nome, tudo para poder alegar o interesse superior da menor. Para justificar a sua actuação, criou através da ficção uma realidade familiar à menor, que não existia.»
15 – Então está bem patente o dolo do crime de subtracção de menor, na modalidade de recusa da sua entrega a quem estava legitimamente confiado. O arguido e mulher mantiveram a menor fora do alcance do assistente e das autoridades judiciais e policiais, somente como forma de consumarem o crime de subtracção de menor, mas não se deve afirmar a existência de um dolo genérico autónomo e próprio do crime de sequestro, mas um intensíssimo dolo em relação ao crime de subtracção de menor.
16 – Os desenvolvimentos no processo de regulação do poder paternal, documentados no processo, permitem concluir que a menor foi cuidada neste tempo e que o recorrente persiste na sua tentativa de obstar ao exercício efectivo pelo assistente do poder paternal.
17 – Faltando o elemento subjectivo do crime de sequestro não pode manter-se a condenação do arguido por esse crime, o que não significa, como se viu, que deva ser de todo absolvido da acusação oportunamente formulada contra si.
18 – Afastada a prática do crime de sequestro, afastado fica o concurso aparente, pelo que a conduta do recorrente continua punível, mas agora no quadro exclusivo do crime de subtracção de menor, pelo que haverá que individualizar judicialmente a pena.
19 – De acordo com a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro ao art.249.ºdo C. Penal, a conduta do arguido é hoje punível com prisão de 1 a 5 anos, mas de acordo com o disposto no n.º 4 do art.2.º do mesmo diploma, aplicar-se-á a pena prevista na redacção vigente à data da prática dos factos: prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
20 – Não é de optar pela pena de multa, dadas as circunstâncias do caso, o dolo intenso com que agiu o recorrente, a persistência na sua conduta, o desrespeito pelos interesses e direitos da menor e de seu pai, bem como pelo sistema legal e judicial, os danos presentes e futuros da sua conduta que não permitem concluir que a aplicação de uma pena de multa satisfaça as necessidades de prevenção geral de integração e de intimidação. E mesmo a prevenção especial, neste contexto em que o recorrente ainda não compreendeu o desvalor dos resultados da sua conduta, não se satisfaz com a aplicação de uma pena de multa.
21 – Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente e o dolo directo e intensíssimo, estando provado, neste domínio e em síntese, que o arguido:
* Impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultado o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência, apesar de saber que este tinha juridicamente a sua guarda e direcção, e que lhe incumbia educar e tratar a filha, com quem deveria viver, privando pai e filha da companhia um do outro.
* Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, a quem compete decidir sobre a vida daquela, sabendo que esta não tem capacidade de decisão.
* Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe. Sabia que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
* Isto quando logo em 27.2.2003 o pai da menor manifestou ao Ministério Público de Sertã, o desejo de regular o exercício do poder paternal e de ficar com a menor à sua guarda e cuidados e imediatamente procurou a filha, deslocando-se à residência do arguido, logo que conheceu o local onde esta se encontrava aos fins de semana, inúmeras vezes, reclamando a sua filha, conhecê-la e levá-la consigo para a sua residência, o nunca lhe foi permitido, mesmo durante o Processo de Regulação do Poder Paternal, cujo desfecho lhe foi favorável, percorrendo milhares de quilómetros em viatura própria, mensal e em determinadas alturas, semanalmente, quer para ver a filha, quer para que lhe fosse entregue.
* O arguido, não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor.
* O pai da menor, quis e quer, desde que o soube ser o pai, assumir-se realmente como tal, não pode, como desejava, dar-lhe os cuidados e atenção de pai, apresentá-la à sua família, inseri-la no seu agregado familiar, quando organizou a sua vida nessa perspectiva. Sendo grande a sua tristeza, angustia e desespero, ao ver-se sucessivamente impedido de ter acesso à respectiva, filha por causa da actuação do arguido e esposa,
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: o arguido agiu sabendo que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. Não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor e adoptou uma atitude de menosprezo pelos sentimentos anseios e expectativas do pai em relação à sua filha, dizendo-lhe directamente "nunca lhe entregariam a filha”.
* Pretendia o recorrente, com a sua conduta, evitar a entrega da menor ao pai e ficar com ela como se sua filha fosse. Mas, como se refere no acórdão recorrido, «ao manter uma atitude de não entregar a menor, uma criança, agora já com cinco anos, privando-a do contacto com o pai, e até, em certo momento com a mãe, não permitindo a convivência com a sua génese de sangue, não dando sequer qualquer informação sobre a mesma, deixando até a dúvida de como a criança se encontra física e psicologicamente, tendo este comportamento como de interesse para a criança, como se fosse do interesse de qualquer criança negar-lhe o acesso ao pai, despersonalizando a criança, mudando-lhe o nome, ocultando a origem » (…) «Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança.»
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica: o arguido é sargento do Exército e é casado.
– A conduta anterior ao facto e posterior a este: o arguido não tem antecedentes criminais;
22 – A esta luz as enormes exigências de prevenção geral de integração e de intimidação impõem a aplicação de uma pena que coincide com o limite máximo da respectiva moldura penal abstracta: 2 anos de prisão, pena que é consentida pelo muito intenso dolo com que o arguido agiu.
23 – A circunstância de só o arguido ter recorrido da condenação confirmada pela Relação significa eu não lhe pode, por isso, ser aplicada uma pena mais grave do que a que lhe fora infligida pela Relação: 3 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, com as condições mencionadas, o que dispensa o Supremo Tribunal de Justiça de analisar que se seria ou não de suspender a execução da pena de prisão. Com efeito, tem entendido, este Supremo Tribunal de Justiça que em recurso só trazido pelo arguido, este não pode ser penalizado mais gravemente do que na decisão recorrida, por virtude do princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP, tal como vem entendendo.
24 – Assim a pena de 2 anos que agora se aplica pelo crime de subtracção de menor, vai suspensa na sua execução por 2 anos, subordinada ao cumprimento pelo arguido dos seguintes deveres, nos termos do n.º 1 do art. 51.º do C. Penal:
– Apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença.
– Cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal.
25 – Não se retoma o estabelecimento do objectivo fixado, pela Relação, para a apresentação da menor (o de os técnicos promoverem a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores), pois que os desenvolvimentos posteriores do processo de regulação de poder paternal, documentados nestes autos, com as dificuldades sentidas pela competente Secção Cível da Relação de Coimbra na definição precisa do tempo e modo da aproximação da menor ao assistente seu pai, significa que a manutenção desse dever iria interferir no procedimento que vem sendo seguido no processo de regulação do poder paternal.
26 – Agiu, assim, ilicitamente o arguido, pelo que estando demonstrados os danos causados pela sua conduta, não podia o mesmo deixar de ser condenado no pagamento de uma justa indemnização.
AcSTJ de 10.01.2008, proc. n.º 3227/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
1 – A Relação, sendo um tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância ou por si, o que constitui igualmente matéria de facto. Essas conclusões ou ilações escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar.
2 – O direito ao silêncio por parte do arguido não é um direito ilimitado e que incide sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar, ou seja, abrange apenas o interrogatório substancial sobre o mérito (a factualidade integradora da acusação e declarações sobre ela já prestadas) e a questão da culpabilidade, que comporta excepções, como a resultante da al. b) do n.º 3 desse art. 61.º, e o, já referido, dever de responder com verdade às perguntas feita por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais.
3 – Tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio.
4 – Como vem entendendo pacificamente o Supremo Tribunal de Justiça, a sentença judicial é ela também susceptível de ser interpretada com recurso às boas regras de hermenêutica, pois não obstante a sua característica de acto de autoridade, designadamente a sua parte decisória, é um acto jurídico declarativo e formal, dirigido às partes e, portanto, susceptível de interpretação, de harmonia com as regras, devidamente adaptadas, consignadas nos art.ºs 236.º e ss., do C. Civil.
5 – Se no dispositivo do acórdão da 1.ª Instância se escreve que o colectivo de juízes decidiu absolver o arguido da prática como autor material de um crime de subtracção de menor do art. 249.º, n.º 1, al. c) do C. Penal, mas na fundamentação da decisão se tiverem por verificados dois crimes: de sequestro agravado e de subtracção de menor, em concurso aparente entre esses dois crimes e concluir neste último sentido, decidindo que o arguido seria só punido «pela prática do crime de sequestro sendo os restantes factos ponderados na determinação da medida concreta da pena, é esta luz que deve ser interpretado o dispositivo.
6 – E se o arguido ao recorrer para a Relação não impugnou a decisão da 1.ª instância quanto à verificação do crime de subtracção de menor, se vier a cair a condenação pelo crime de sequestro, desaparecendo o concurso de infracções, só resta determinar a pena a aplicar por aquele crime.
7 – Mostrando-se preenchidos os crimes de subtracção de menor e de sequestro, verifica-se um concurso aparente a punir no quadro do crime de sequestro.
8 – No crime de subtracção de menor censuram-se agressões ao legítimo exercício dos poderes legalmente definidos para o suprimento da incapacidade dos mesmos – poder paternal e tutela, estabelecendo-se uma dupla protecção: por um lado, em benefício do menor, para que permaneça dentro da sua família, e, por outro, em favor desta, com vista a conservá-lo no seu seio.
9 – Prevêem-se três situações delituosas: subtracção; determinação à fuga por meio de violência ou ameaça de mal importante; ou recusa de entrega do menor a quem esteja legitimamente confiado, isto é: sonegação ou retenção de menor a quem exerça o poder paternal, a tutela ou qualquer outro poder legítimo sobre ele.
10 – Há recusa na entrega sempre que o menor, temporária ou precariamente fora dos cuidados de quem de direito, por acção do agente sob cujo instável poder se encontra não regressa ao seu poder de direcção e guarda, residindo aqui a tónica criminosa, pois, na retenção sem justa causa.
11 – Estando assente que foi o arguido notificado da sentença judicial que regulou o exercício do poder paternal da menor e determinou, a atribuição ao assistente, pai desta, o desempenho do poder paternal e que, não obstante a interposição, por si, de recurso então não admitido, mas sempre com efeito meramente devolutivo, logo legal e imediatamente obrigatório (art. 185.º da O.T.M.), sempre se recusou a entregar a menor ao assistente, bem sabendo que a isso estava obrigado, verifica-se o crime de subtracção de menor.
12 – O Supremo Tribunal de Justiça, num caso semelhante (AcSTJ de 2.1.2006, proc. n.º 3127/05), entendeu que se verificava, no caso, concurso aparente entre um crime de sequestro agravado e um crime de subtracção de menor a punir no quadro do crime de sequestro, com o dolo genérico, em relação a este último, a consciência e vontade de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.
13 – Não se ofereceram então dúvidas sobre a verificação do dolo do agente que levara a menor da presença da mãe, que exercia o poder paternal, contra a vontade desta, inesperadamente, para local desconhecido onde a mantém, impedindo os contactos, sem a menor se poder movimentar livremente, através da sua mãe, utilizando-a como instrumento de vingança, sofrimento e dor, contra esta e sua família, procurando, assim, levar a mãe da menor a reatar o relacionamento amoroso, ameaçando-a de, em caso negativo nunca mais voltar a ver a filha. Ou seja, o agente agiu com a intenção de privar a menor da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço, para poder utilizar essa situação como um elemento de pressão que levasse a mãe daquela a realizar um desejo seu (reatamento da vida em comum), condicionada por aquele confinamento.
14 – Mas, tal não acontece, mostrando-se afastado o dolo de seuqestro, quando, como no caso presente, a própria decisão recorrida entendeu que:
– O «arguido previu e quis agir com o desígnio de, por meio de tais condutas, não restituir a menor ao assistente, pessoa que sabia que juridicamente tinha a sua guarda e direcção, ficando a menor submetida à sua disposição e fora do domínio e controlo do assistente (…) Ao agir do modo acima descrito previu e quis, ainda, reter a menor consigo, bem sabendo que atenta a idade desta última, a mesma estava impossibilitada de ir para a casa e companhia do assistente, seu pai, pelos seus próprios meios»;
– «A circunstância de o recorrente ter recebido a menor da mãe, pouca importância tem, a partir do momento em que nenhuma lei ou decisão judicial conferiu ao arguido e sua mulher o direito de a levar e de a conservar consigo nas circunstâncias em que o fez, desconhecendo se o pai estava de acordo com a entrega e mais tarde, retiveram-na sabendo que fora atribuído o poder paternal ao pai, o assistente»;
– «Por outro, e fundamentalmente, porque o arguido e sua mulher, negaram o acesso dos pais (pai e mãe) à menor não deixando sequer vê-la, não a apresentando ao tribunal nem ás autoridades, agiram como se tivessem a guarda e confiança da menor»;
– Levou-a para local desconhecido, com o propósito de a afastar dos pais. Deste modo quis fazer nascer laços de amor da criança para com eles, com o decorrer do tempo, fazendo-se passar por pais, apagando a personalidade da menor, mudando-lhe até o nome, tudo para poder alegar o interesse superior da menor. Para justificar a sua actuação, criou através da ficção uma realidade familiar à menor, que não existia.»
15 – Então está bem patente o dolo do crime de subtracção de menor, na modalidade de recusa da sua entrega a quem estava legitimamente confiado. O arguido e mulher mantiveram a menor fora do alcance do assistente e das autoridades judiciais e policiais, somente como forma de consumarem o crime de subtracção de menor, mas não se deve afirmar a existência de um dolo genérico autónomo e próprio do crime de sequestro, mas um intensíssimo dolo em relação ao crime de subtracção de menor.
16 – Os desenvolvimentos no processo de regulação do poder paternal, documentados no processo, permitem concluir que a menor foi cuidada neste tempo e que o recorrente persiste na sua tentativa de obstar ao exercício efectivo pelo assistente do poder paternal.
17 – Faltando o elemento subjectivo do crime de sequestro não pode manter-se a condenação do arguido por esse crime, o que não significa, como se viu, que deva ser de todo absolvido da acusação oportunamente formulada contra si.
18 – Afastada a prática do crime de sequestro, afastado fica o concurso aparente, pelo que a conduta do recorrente continua punível, mas agora no quadro exclusivo do crime de subtracção de menor, pelo que haverá que individualizar judicialmente a pena.
19 – De acordo com a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro ao art.249.ºdo C. Penal, a conduta do arguido é hoje punível com prisão de 1 a 5 anos, mas de acordo com o disposto no n.º 4 do art.2.º do mesmo diploma, aplicar-se-á a pena prevista na redacção vigente à data da prática dos factos: prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
20 – Não é de optar pela pena de multa, dadas as circunstâncias do caso, o dolo intenso com que agiu o recorrente, a persistência na sua conduta, o desrespeito pelos interesses e direitos da menor e de seu pai, bem como pelo sistema legal e judicial, os danos presentes e futuros da sua conduta que não permitem concluir que a aplicação de uma pena de multa satisfaça as necessidades de prevenção geral de integração e de intimidação. E mesmo a prevenção especial, neste contexto em que o recorrente ainda não compreendeu o desvalor dos resultados da sua conduta, não se satisfaz com a aplicação de uma pena de multa.
21 – Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente e o dolo directo e intensíssimo, estando provado, neste domínio e em síntese, que o arguido:
* Impediu que a menor fosse entregue à guarda e aos cuidados do pai, o assistente, ocultado o lugar onde esta se encontrava, chegando a mudar várias vezes de residência, apesar de saber que este tinha juridicamente a sua guarda e direcção, e que lhe incumbia educar e tratar a filha, com quem deveria viver, privando pai e filha da companhia um do outro.
* Vem tomando decisões sobre o modo e condições de vida da menor, contra a vontade do seu pai, titular do exercício do poder paternal, a quem compete decidir sobre a vida daquela, sabendo que esta não tem capacidade de decisão.
* Impediu a menor de criar vínculo afectivo com o progenitor, sequer de se aproximar dele, nunca tendo dialogado com este, no sentido de entre todos acordarem uma solução que causasse um menor sofrimento a esta, ao ser deslocada de junto de si para junto do pai; impediu-a de conhecer a sua verdadeira identidade, o seu verdadeiro nome, a sua realidade familiar, quer pelo lado do pai, quer pelo lado da mãe. Sabia que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta.
* Isto quando logo em 27.2.2003 o pai da menor manifestou ao Ministério Público de Sertã, o desejo de regular o exercício do poder paternal e de ficar com a menor à sua guarda e cuidados e imediatamente procurou a filha, deslocando-se à residência do arguido, logo que conheceu o local onde esta se encontrava aos fins de semana, inúmeras vezes, reclamando a sua filha, conhecê-la e levá-la consigo para a sua residência, o nunca lhe foi permitido, mesmo durante o Processo de Regulação do Poder Paternal, cujo desfecho lhe foi favorável, percorrendo milhares de quilómetros em viatura própria, mensal e em determinadas alturas, semanalmente, quer para ver a filha, quer para que lhe fosse entregue.
* O arguido, não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor.
* O pai da menor, quis e quer, desde que o soube ser o pai, assumir-se realmente como tal, não pode, como desejava, dar-lhe os cuidados e atenção de pai, apresentá-la à sua família, inseri-la no seu agregado familiar, quando organizou a sua vida nessa perspectiva. Sendo grande a sua tristeza, angustia e desespero, ao ver-se sucessivamente impedido de ter acesso à respectiva, filha por causa da actuação do arguido e esposa,
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: o arguido agiu sabendo que quanto mais se prolongasse no tempo a recusa de entrega da menor ao pai, retendo-a junto de si, mais penoso seria para esta adaptar-se à sua família e ao contexto e valores de vida desta. Não obstante a sentença proferida na regulação do poder paternal, recusou-se a entregar a menor e adoptou uma atitude de menosprezo pelos sentimentos anseios e expectativas do pai em relação à sua filha, dizendo-lhe directamente "nunca lhe entregariam a filha”.
* Pretendia o recorrente, com a sua conduta, evitar a entrega da menor ao pai e ficar com ela como se sua filha fosse. Mas, como se refere no acórdão recorrido, «ao manter uma atitude de não entregar a menor, uma criança, agora já com cinco anos, privando-a do contacto com o pai, e até, em certo momento com a mãe, não permitindo a convivência com a sua génese de sangue, não dando sequer qualquer informação sobre a mesma, deixando até a dúvida de como a criança se encontra física e psicologicamente, tendo este comportamento como de interesse para a criança, como se fosse do interesse de qualquer criança negar-lhe o acesso ao pai, despersonalizando a criança, mudando-lhe o nome, ocultando a origem » (…) «Como resulta da matéria de facto provada, a conduta do arguido demonstra uma personalidade assente em traços de teimosia, intransigência e frieza, bem como a “falta de ressonância afectiva e de assunção de sentimentos de culpa”, confundindo o seu egoísmo com o interesse da criança.»
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica: o arguido é sargento do Exército e é casado.
– A conduta anterior ao facto e posterior a este: o arguido não tem antecedentes criminais;
22 – A esta luz as enormes exigências de prevenção geral de integração e de intimidação impõem a aplicação de uma pena que coincide com o limite máximo da respectiva moldura penal abstracta: 2 anos de prisão, pena que é consentida pelo muito intenso dolo com que o arguido agiu.
23 – A circunstância de só o arguido ter recorrido da condenação confirmada pela Relação significa eu não lhe pode, por isso, ser aplicada uma pena mais grave do que a que lhe fora infligida pela Relação: 3 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, com as condições mencionadas, o que dispensa o Supremo Tribunal de Justiça de analisar que se seria ou não de suspender a execução da pena de prisão. Com efeito, tem entendido, este Supremo Tribunal de Justiça que em recurso só trazido pelo arguido, este não pode ser penalizado mais gravemente do que na decisão recorrida, por virtude do princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º do CPP, tal como vem entendendo.
24 – Assim a pena de 2 anos que agora se aplica pelo crime de subtracção de menor, vai suspensa na sua execução por 2 anos, subordinada ao cumprimento pelo arguido dos seguintes deveres, nos termos do n.º 1 do art. 51.º do C. Penal:
– Apresentar a menor nos tribunais ou noutro local que o juiz competente ordene e sempre que seja exigido a sua presença.
– Cumprir todas as decisões que envolvam a menor que sejam tomadas no tribunal que regula o exercício do poder paternal.
25 – Não se retoma o estabelecimento do objectivo fixado, pela Relação, para a apresentação da menor (o de os técnicos promoverem a explicação à menor acerca da sua real identidade e a dos seus progenitores), pois que os desenvolvimentos posteriores do processo de regulação de poder paternal, documentados nestes autos, com as dificuldades sentidas pela competente Secção Cível da Relação de Coimbra na definição precisa do tempo e modo da aproximação da menor ao assistente seu pai, significa que a manutenção desse dever iria interferir no procedimento que vem sendo seguido no processo de regulação do poder paternal.
26 – Agiu, assim, ilicitamente o arguido, pelo que estando demonstrados os danos causados pela sua conduta, não podia o mesmo deixar de ser condenado no pagamento de uma justa indemnização.
AcSTJ de 10.01.2008, proc. n.º 3227/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
2 comentários:
Interessante!!!
Abraço
Não esperaria outra coisa...mas eu sou ignorante das "cousas da Lei"!
:)))
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