domingo, 15 de outubro de 2006

Esboço de política criminal e processo

Apesar de não gostar de repetir o mesmo postal em mais do que um blog, na medida em que ainda está em curso no Grano Salis o debate sobre a reforma processual penal, vou transcrever aqui o texto que acabei de publicar no Sine Die:



Relativamente às notícias referidas por Maia Costa sobre prioridades de política criminal, quem quiser consultar um “esboço” oficial pode fazê-lo aqui.

Primeiro comentário: o que consta do esboço parece coerente com o roteiro já referido no Sine Die.
Será interessante analisar agora o sentido das directivas, o que as mesmas implicam e em que se podem traduzir.
Suscito uma questão "comezinha", que vai além da coerência ideológica: se, de acordo com a lei quadro da política criminal, as orientações não se aplicam aos tribunais, os juízes que entendam (e existe jurisprudência sobre a matéria) que a concordância do juiz de instrução na suspensão provisória do processo também incide sobre a abstenção acusatória deverão apreciar a livremente esta e, consequentemente, a respectiva opção político criminal (exemplo a Suspensão provisória do processo de «Traficante consumidor» «com plano de reabilitação»)? Isso não corresponderia a uma profunda disfunção político constitucional?
E a propósito da questão "comezinha", uma impertinência, este problema não podia ser facilmente resolvido na lei ... processual penal? O silêncio do código reformado ou revisto (que se verifica no projecto) quanto a esta matéria não poderá ser problemático e pôr em causa a operatividade da lei quadro e das leis enquadradas de política criminal?

8 comentários:

José António Barreiros disse...

Bem observado! E já agora, pois hoje é Domingo, uma história verdadeira, para rir. Num processo crime um generoso e amável procurador propôs ao arguido que era, aliás, um bem-humorado editor, que, para evitar uma acusação por violação de direitos autorais, suportasse uma injunção. na lógica de curar dentada de cão com pêlo do mesmo cão, combinou-se que o homem entregasse umas abadas de livros a umas instituições de velhinhos, para os entreter nas horas vagas. Assim se fez e lá se semeou cultura literária por alguns lares da terceira idade, para lhes animar os domingos sem família. Só que o juiz , sabe-se lá porquê, achou que não, explicando, num despacho escassamente fundamentado, a sua discordância. Eis a ratoeira! Como nos termos do CPP as prestações efectuadas a título de injunção não são repetidas, o homem ficou sem os livros e o processo voltou ao MP para acusar. Claro que, com o desenrascanso que nos caracteriza, tudo se resolveu. Semanas depois o arguido foi notificado de que o MP, afinal, tudo pensado, nem culpa diminuta encontrava pelo que ordenara o arquivamento dos autos.
façam o favor de me dizer que tudo isto está mal. Eu não concordo: o que está mal é eu andar metido no meio disto tudo!

Kamikaze (L.P.) disse...

Injunçao cumprida ANTES da comunicaçao ao arguido do despacho de concordancia do juiz com a suspensao provisoria do processo proposta pelo MP??????

José António Barreiros disse...

Sim, injunção cummprida antes, porque o imbecil do advogado acreditou na boa fé de quem lhe propunha que se prestasse a injunção e se viu ludibridado nessa expectativa. É assim que se aprende: a confessar uma infâmia e a perceber o ridículo a que nos expusemos. E já agora só uma rectificação: o arguido ficou sem os livros não por causa da lei que diz que não são repetidas [pois esse pereceito só se aplica em caso de incumprimento] mas por ter tido vergonha de ir às instituições a que os oferecera, pedi-los de volta.

Paulo Dá Mesquita disse...
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Paulo Dá Mesquita disse...

Uma história verdadeira e para rir que, além de reveladora, entronca naquilo que, cada vez mais, se apresenta como o que devia ser um princípio fundamental num processo verdadeiramente acusatório: lealdade processual (o qual naturalmente compreende responsabilização das «partes» e limitações à margem da acção do tribunal).
Ao que julgo foi a isso que se queria referir Rodrigo Santiago na semana passada no "Prós e Contras", quando destacou um artigo de Figueiredo Dias na RLJ em que a propósito desse princípio analisava a auto-vinculação do MP (na fase de julgamento).
Numa formulação chã e simplista, o problema vai além do que é apontado por Figueiredo Dias´: de que serve ao arguido a vinculação do MP se o juiz não está vinculado e pode assumir a pretensão punitiva do Estado?
Quanto à SPP, mesmo no caso de a injunção não ser previamente cumprida (e para além de se desbaratar a efectiva acusatoriedade do sistema), a expectativa do arguido não merece tutela? Não choca que o arguido seja induzido numa assunção de responsabilidade (ainda que não formal)?
Deixando os argumentos mais técnico-jurídicos, não será isto a expressão de uma cultura inquisitória e autoritarista que sobreviveu às intenções liberais do CPP de 87?

E agora aproveito para uma pergunta, muito atrasada, a José António Barreiros (caso volte a esta caixa e continue a ter paciência que já revelou noutras ocasiões), acha mesmo que Beleza dos Santos era liberal ? (li com atraso um postal em que o referia, salvo erro a propósito de prazos, mas já era tarde para me dirigir à caixa de comentários, e tal juízo, que já vi formulado por outros, surpreende-me em face do pouco que conheço desse autor)

victor rosa de freitas disse...

Trata-se de um mau exemplo.

Por essa ordem de ideias, o Ministério Público pode sempre acusar primeiro os crimes definidos como prioritários (corrupção, tráfico de droga, violência doméstica...) e os "malandros" dos juízes marcarem primeiro os julgamentos de outros crimes (burlas, furtos, homicídios...).

Claro que, à boa maneira portuguesa, não se explica aos leitores que 90 e tal por cento dos processos em que o Ministério Público propõe a suspensão provisória do inquérito, têm homologação do juiz de instrução.

Nem vale a pena pessoalizar a questão...

No exemplo do Dr. JAB quem sai mal, a final, é o Ministério Público que arquivou o processo, pelos vistos, por "birra" de não ver a sua pretensão homologada judicialmente...

Tudo excepções que não põem em causa qualquer política criminal.

É que qualquer vício (leia-se excepção) tem o seu "advogado" para fazer a regra.

Tenha paciência, Paulo Dá Mesquita...

Kamikaze (L.P.) disse...

ver aqui, para alem do mais, a opiniao de Rui Cardoso.

António Madureira disse...

Nesta matéria da orientação da investigação pelo MP e nomeadamente no que toca aos meios de prova, deve o MP actuar sempre segundo os princípios da objectividade, como ensina Roxin e Figueiredo Dias em Portugal. Pergunto, será por desconhecimento da lei ou por falta de objectividade, que o MP, dificilmente promove a realização da perícia médico legal do art. 52º do DL 15/93-22/01, quando há noticia nos autos do Inquérito, de arguido toxicodependente para efeitos de prova dessa sua condição, de por ex.º traficante consumidor? Porque é tão celere a ordenar certo tipo de diligências provatórias e noutras não? E já agora esta violação da lei configura algum vício processual ou não? e qual? As consequências podem ser drásticas para o consumidor, se realizar a perícia médico legal passados 3 ou 4 meses!