segunda-feira, 11 de setembro de 2006

O novo CPP: prazos de Inquérito

Lembro-me, porque estava lá, quando em 1987 se redigiu o que viria a ser o art. 276º do CPP. Foi numa comissão presidida pelo Doutor Figueiredo Dias, incumbida de preparar um código que substituisse o CPP de 1929. Ganhou-se consciência de que estávamos a prever prazos de duração do inquérito e, aliás, também de prisão preventiva, largamente superiores àqueles que resultavam da lei anterior. O código da democracia iria ser, nesta parte, mais autoritário que o código da ditadura nacional. Por isso mesmo houve o cuidado de consagrar claramente, no nº 1 daquele art. 276º e na própria epígrafe do preceito, a expressão "prazos máximos" e "prazos de duração máxima", para que ficasse claro que aqueles eram os limites toleráveis para as averiguações pré-acusatórias.
Houve, porém, uma grave ingenuidade por parte da comissão: o não ter previsto expressamente o que sucederia no caso de aquele comando legal não ser cumprido e de os inquéritos se arrastarem, por isso, para além daqueles prazos. É certo que o código era muito explícito ao dizer que as ilegalidades que não fossem taxadas como nulidades eram, ao menos, irregularidades (art. 118º do CPP) e que as irregularidades determinavam a invalidade dos actos posteriores (art. 123º).
Só que aquilo com que os legisladores de então não contavam é que à sistemática e deliberada violação da lei sucedesse, como sanção, coisíssima nenhuma. Na verdade, a jurisprudência dos nossos tribunais, fingindo não reparar que, por duas vezes, o legislador havia dado indicações expressas de que se tratava de prazos máximos, rapidamente construiu a teoria de que se tratava, afinal, de prazos meramente ordenadores e não cominatórios, ou seja, que os magistrados os podiam desrespeitar sem qualquer consequência. Mesmo quando as coisas atingiram o abuso de surgirem acusações que tinham a fundamentá-las quase 10 anos de inquérito [repito, quase dez anos ], mesmo assim a miopia jurisprudencial não se impressionou.
Denunciei, tantas vezes quanto me foi possível, esta situação de legitimação da ilegalidade pelos que deviam ser os primeiros a cumpri-la. Claro que, para vergonha nossa, o CPP de 1929, talvez por ter na sua génese o espírito liberal do Doutor Beleza dos Santos, continha o melhor antídoto para prevenir abusos quanto ao desrespeito dos seus curtos prazos: é que, esgotado o prazo do corpo de delito ou instrução preparatória [assim se chamava o que hoje conhecemos por inquérito] abria-se automaticamente a instrução contraditória. Dito por outras palavras: o investigador tinha a seu benefício o segredo de justiça e a total ausência de intervenção dos outros sujeitos processuais na fase das aveiriguações que visavam preparar a acusação e enquanto se contivesse dentro do limite do prazo legal; esgotado este, e porque se abria a fase contraditória, podia continuar as suas averiguações mas já tinha perdido aquelas duas vantagens, pois o conhecimento dos autos abria-se aos sujeitos processuais e eles podiam nele ter intervenção.
O legislador do código que aí virá manteve incólume o sistema do código que pretende reformular. Diga-se que hoje há criminalidade muito mais complexa, mas não tentem enganar-nos fingindo que é toda. Diga-se que lutamos com grande falta de meios, mas essa ladaínha, que se arrasta há anos, já convence cada vez menos pessoas. Uma só coisa, neste particular, é uma exigência crucial do Estado de Direito: respeite-se a segurança jurídica, os direitos das pessoas, defina-se um prazo, vários prazos, o que quer que seja, mas estabeleça-se definitivamente que são para cumprir e quando se derem, como se tinham dado, indicações claras de que se trata de prazos máximos, não se consinta, nunca mais, a total falta de respeito que é o fingir que a lei é só para alguns cumprirem.

PS 1 - já sei que para certas pessoas o culpado dos processos não andarem é o excesso de garantismo e a intervenção dos advogados; o argumento aqui não serve, pois se há fase processual em que os advogados nem sabem o que se passa nem podem actuar, éprecisamente a do inquérito;

PS 2 - não me digam que, para colmatar os incumprimentos dos prazos, existe o incidente da aceleração processual, porque basta olhar para o art. 109º do CPP para ver que, em nome dele, o PGR pode ordenar tudo menos medidas concretas com incidência no processo. Trata-se de um incidente esvaziado, o que tem uma explicação histórica: é que na fase judicial do processo a competência para decidir a aceleração cabe ao CSM e se a lei permitisse que, em nome da aceleração, se pudessem tomar providências que significassem ordenar a prática de actos processuais, estaríamos a dar a um órgão administrativo, o CSM, competência para praticar actos de processo penal, o que seria inconstitucional. Ora por causa desta impossibilidade de o CSM intervir directamente no processo, ficou o PGR, por paridade de razão, incapacitado de o poder fazer na mesma conformidade.

9 comentários:

Pedro disse...

Ainda relativamente aos prazos, que a jurisprudência considera como meramente ordenadores apenas para os magistrados, só revela o carácter corporativo da magistratura portuguesa ao não se prever qualquer sanção pelo não cumprimento dos mesmos. Ao passo que, e relativamente aos advogados, o não cumprimento dos prazos determina o insucesso de uma causa. Enfim, o sistema judicial português no seu melhor...

PFA disse...

Pois é Dr. Barreiros.
O pensamento legislativo, mesmo quando perfeitamente expresso, pode não ser considerado pelo intérprete.
Não resisti a reproduzir no http://horizontejuridico.blogspot.com

josé disse...

Belíssimo postal que concentra uma boa parte dos equívocos que resultam da nossa particular maneira de ser.

Pode perguntar-se apenas uma pequena coisinha:

Quando a lei processual permite que se defiram investigações a polícias (opc) e em alguns casos a lei das mesmas até o impõe, que fazer, sabendo que algumas dessas investigações são das mais complexas?

Uma coisa simples a meu ver e que nunca foi feita:

Reformar toda a organização interna do MP, no que se refere aos métodos de actuação e à repartição de tarefas consoante as modernas técnicas de gestão em paralelo com o tradicional conservadorismo de actuação burocrática.

Há mais de trinta anos que continuam na mesma, apesar de DCIAPS e DIAPS. Nada muda de substancial, em prol de um conceito cuja palavra detesto mas não arranjo agora outra: agilização de procedimentos.

De quem seria a obrigação e a responsabilidade em (re)pensar tudo isso?

Parece-me pergunta de resposta fácil: da PGR e do CSMP, em particular e de outras entidades que poderiam e deveriam estudar a veradeira reforma que se impõe.

Ainda vamos a tempo...

josé disse...

E para não parecer que as culpas da (des)organização ficam no edifício do Duque de Palmela, lembro ainda que poucos anos após o CPP de 1987,para ver os resultados, o MP ( quando ainda o podia fazer)fez uma inspecção à PJ.
Segundo uma entrevista de época de Cunha Rodrigues, havia por lá monos com mais de dez volumes, ainda na fase de prè-Inquérito...
E não era só um...

Agora pergunta-se:
De quem é a responsabilidade pela organização das relações insitucionais entre as polícias e o MP?
Quem define ( ou não definiu) o conceito de dependência funcional?
Desta vez a culpa não é da PGR nem sequer de Cunha Rodrigues que se fartou de falar do "corpo sem braços"...

josé disse...

Caro José António Barreiros:

Quase todos os crimes catalogados e com relevância penal de peso, são da "competência reservada" da PJ, apesar de o DCIAP dirigir todos esses Inquéritos.
Dirige mesmo, na prática? Ou seja, será o DCIAP quem decide a oportunidade de uma busca ou de uma escuta telefónica ou ainda estabelece a táctica para a investigação dos factos? Como isso, se os fundamentos da conveniência lhes forem apresentados pelos inspectores da PJ?

Dito de outro modo: quem é que detém fisicamente o processo, diariamente, enquanto se fazem diligências concretas que aí ficam documentadas?
Quando um magistrado delega/remete um processo à PJ para investigação de um crime cuja competência lhe está aliás reservada, como se distingue a autonomia da polícia do poder de direcção do MP?

Acho sinceramente que este problema nunca foi resolvido.
E até me apetede dar um palpite sobre uma das razões de tal equívoco que permanece. A PJ,- a sua direcção e os seus inspectores -não querem largar de mão o poder de saber e dirigir na prática consoante aquilo que sabe.
E só relutantemente admitem psicologicamente a plena aplicação da letra e espírito da lei, actuando junto dos magistrados como os detentores do poder de direcção e esperando que sejam eles quem dirija efectivamente o Inquérito.
Digo-o por experiência própria e digo-o porque foi isso que vi dito e escrito por Cunha Rodrigues e agora também por Cândida de Almeida.

Mas não vá por mim: tirando um ou outro caso em que inspectores da PJ são nomeados para coadjuvar efectivamente os magistrados ( como parece que aconteceu no P. Casa Pia), na maioria dos casos mediáticos, a orientação fica a cargo de inspectores e directores da PJ.
Veja como Maria José Morgado fala do tempo em que esteve na PJ e a quem ela se refere por exemplo quanto ao sucesso do caso Vale e Azevedo...

Há um longo caminho a percorrer.

josé disse...

Sobre os prè-iquéritos:

Se a lei diz que toda a notícia de um crime dá origem a um Inquérito - "Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito."-artº 262º nº2 CPP. nessas excepções não parece que se contenham os prè-inquéritos, mesmo sob a forma de processo administrativo.

Mas...na prática o que acontece realmente? Saberemos nós, actualmente o que se passa na PJ, com eventuais papéis que entrem e sejam autuados como procedimentos administrativos? Como podemos saber se a inspecção da PJ é da competência da tutela?

Muita gente defendeu a instauração de um procedimento administrativo para averiguação do caso do envelope 9.
Não vi ninguém sustentar a legalidade de tal procedimento, face à lei processual actual.
No caso das denúncias de crimes concretos efectuadas de forma anónima ( ainda agora o presidente do Benfica foi à PGR apresentar um dossier anónimo...), será possível atirá-las para o lixo ou para um qualquer processo administrativo, sempre que a quem o analise pareça que não haverá crime?
E se for uma denúncia de um crime tipo terramoto, será admissível pensar que um terramoto é algo de intangível numa sociedade estável como a nossa?
Quem define o critério da "denúncia anónima infundamentada"?
Não será melhor o sistema actual, de estita observância da legalidade e com pouca margem à oportunidade, logo no início?

Quanto às delongas processuais, não me parece que o problema principal ocorra com os prazos de conclusão dos Inquéritos.
Oito meses ou seis meses em caso de presos, podem prorrogar-se até ao dobro e não é por aí que as pessoas se enervam.
Enervam sim,em certos procedimentos como os incidentes processuais relativos a escusas ou recusas; com os prazos de recursos que se alargam com as "vistas" sucessivas aos intervenientes processuais e que podem demorar só neste aspecto mais tempo do que os prazos normais para conclusão dos Inquéritos.

Que fazer, então?
Ouvir as pessoas que lidam com os processos. Todas: funcionários( escrivães e secretários); polícias; magistrados; advogados.
Saber em concreto porque emperram certos processos nas Relações durante meses e meses por causa das "vistas".
Definir melhor os critérios de urgência também ajudava...

António Beirão disse...

"PS 2 - não me digam que, para colmatar os incumprimentos dos prazos, existe o incidente da aceleração processual, porque basta olhar para o art. 109º do CPP para ver que, em nome dele, o PGR pode ordenar tudo menos medidas concretas com incidência no processo. Trata-se de um incidente esvaziado..."

Não há dúvida que se perdeu uma oportunidade para tomar posição relativamente aos prazos de inquérito e sua sistemática violação, designadamente instituindo mecanismos de controlo externo ou interno.

A razão deste comentário prende-se apenas com a citação supra, ou seja, com a ideia de que o incidente de aceleração processual é esvaziado de incidência concreta no processo. Não é bem assim.
Em sede de inquérito, se fundado, o incidente de aceleração processual origina uma decisão da PGR que estabelece um prazo máximo para a decisão final do inquérito (muitas das vezes, 30 dias). Este prazo máximo só pode ser prorrogado com nova decisão da PGR, e da minha prática, é geralmente respeitado.
Ou seja, a aceleração processual, se fundada, produz efeitos no inquérito, desde logo quanto à sua conclusão.

Por outro lado, um incidente de aceleração processual pode originar uma inpecção aos serviços respectivos, e dar origem à implementação de medidas para a sua melhoria.

josé disse...

O problema da geminação das magistraturas, acarreta também uma colagem de preconceitos e de equívocos.

Juiz é juiz: decide de modo que se pretende independente e por isso deve ser também irresponsável e inamovível, para que a função se exerça com toda a garantia para a Justiça ( não é privilégio dos próprios, embora os mesmos o confundam vezes de mais).
Juiz é assim, essencialmente, uma função- a jurisdicional.

MP é MP: Tem o dever de investigar crimes e de zelar por interesses relevantes que a lei lhe confia.
Deve fazê-lo com autonomia em relação a outros poderes, incluindo o jurisdicional. E deve fazê-lo objectivamente e com respeito da legalidade estrita.
É também um poder, obviamente e que se traduz, na escolha, segundo aqueles critérios, de quem deve ser submetido ao poder dos juízes, no âmbito do direito penal.

Em Itália, o exercício destes dois poderes distintos, faz-se através de magistrados, indistintamente graduados como tal e genericamente qualificados como juízes, impropriamente em relação ao ministério público, mas que todos sabem distinguir sempre que as funções se separam e exercem.

EM Itália, um juiz assume o papel de magistrado do Ministério Público, porque o sistema lá, permite que se perceba a diferença entre as funções diversas.
Toda a gente percebe também a diferença e não há por lá estas aventuras de busca de identidade perdida, porque todos sabem a fronteira. Por cá, é o que se sabe...

O problema nasceu depois de LAborinho Lúcio ter abandonado o CEJ e terem os herdeiros com a herança jacente e sem saberem bem o que fazer da mesma.

Assim, como na tv passam muitos filmes americanos, o paradigma inconsciente, na opinião pública, passou a ser o do modelo e riuais da justiça anglo saxónica.

Por outro lado, juiz é juiz e qualquer advogado percebe isso mesmo. Sempre...

António Beirão disse...

Se reduzirmos a discussão sobre o Projecto de CPP a velhas questões como a de "quem é que manda em quem" e "quem é o culpado dos falhanços dos processos" e outros derivados, pouca coisa útil resultará...a não ser dar razão aos que entendem que para fazer leis não é preciso ouvir quem com elas lida.