terça-feira, 27 de junho de 2006

A revolta das Relações

Por Rui Macedo (advogado), no Público de hoje

A justiça cível piorou nos últimos anos: há mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo) e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido

O sindicato dos magistrados do MP promoveu recentemente uma tertúlia no Majestic. A dado passo ocorreu uma consonância. Silva Leal, que preside à Ordem dos Advogados no Porto, revelou que tem ouvido desembargadores pugnar pelo fim dos recursos em matéria de facto, o que, no seu entender, seria um retrocesso violador dos direitos de defesa dos cidadãos. O conselheiro Simas Santos acabaria por subscrever estas preocupações, acentuando que "as Relações estão a ter muita dificuldade para apreciar a matéria de facto. Há uma rebeldia", frisou. O sentido disto será um enigma para muita gente. Pois posso esclarecer, com o conhecimento de causa de quem já viu recursos dessa espécie serem sumariamente abatidos pela "rebeldia".
No século XX, emergiu nos países da common law e na Europa Ocidental um modelo de processo judicial que conta entre as suas regras (a) com o registo de toda a prova, incluindo os depoimentos prestados oralmente em audiência, e (b) com a garantia de recurso para um tribunal superior do julgamento sobre os factos pelo tribunal de 1.ª instância. O processo português, todavia, foi-se mantendo à margem da corrente, não obstante haver quem, na faculdade e na advocacia, deplorasse a insuficiente garantia de justo processo, decorrente da falta de documentação de toda a prova e duma plena dupla jurisdição. Argumentava-se, para não dar ouvidos àquelas vozes, que o julgamento dos factos por um colectivo de juízes já era uma garantia de justiça eficaz.
As coisas mudaram em 1995. Na revisão do processo civil então aprovada, garantiu-se a gravação dos depoimentos e a real possibilidade de impugnar o julgamento em matéria de facto no recurso para a Relação. Em contrapartida, o tribunal colectivo foi praticamente abolido, passando as causas a ser julgadas pelo juiz singular (a quem a literatura italiana, para não haver engano, chama monocrático). A última parte foi um erro tremendo. Nada aconselha um desinvestimento nas condições para um processo justo na 1.ª instância por troca com uma maior garantia do seu controlo pela Relação. O ideal é que uma causa seja bem julgada na 1.ª instância. A colegialidade cultiva e ilumina. A solidão do poder de dirigir o processo e julgar a causa atrofia e vicia. Em resultado disto, a justiça cível piorou na 1.ª instância.
Mas o pior estava para vir. Há quem veja no poder de julgar com inteira liberdade as controvérsias de facto, isento de escrutínio ou sindicância, limitado apenas pela sua consciência, a pedra de toque do poder, da independência e da autoridade do juiz, sintetizada neste sugestivo mote: o juiz é soberano em matéria de facto. Para esta ideia autocrática da justiça e do juiz, com adeptos fortes nos tribunais superiores (e na direcção da associação sindical dos juízes), a reforma de 95, ao admitir que o juízo sobre os factos seja passível de impugnação e controlo, representa uma intolerável desautorização do juiz. A esta rejeição ideológica, somou-se a rejeição pelos desembargadores da especialização da Relação como 2.ª instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1.ª instância. Confesso que o motivo disto me escapa. A Relação vivia numa penumbra entre dois focos. A questão de facto era arrumada na 1.ª instância. Na questão de direito, era preponderante o Supremo. A reforma de 95 dá à Relação a oportunidade de fazer a diferença, em terreno vedado ao Supremo: inspirar um modelo inteligente e competente de julgar as controvérsias de facto. E a Relação só pensa em reverter à condição anterior! Não entendo.
Mas já posso explicar o que é a "rebeldia" das Relações a que aludiu o conselheiro Simas Santos. A abrir, é uma proclamação de objecção de consciência a controlar a decisão do juiz de 1.ª instância, servida por uma linha de pensamento de fabrico próprio, indefensável e ptolomaica, nascida para servir o juiz e o desembargador, não para servir a justiça, adoptada por todas as Relações a uma velocidade inédita na formação duma jurisprudência, e sobranceiramente reiterada a cada acórdão, não obstante os avisos que vão surgindo de que aquilo rasga mais de 100 anos de estudos jurídicos.
A fechar, a "rebeldia" tem vindo a anular um regime legal com uma orientação dita jurisprudencial, criando uma caricatura de jurisprudência para tornar a lei inoperante. Chacina sistematicamente os recursos sobre a matéria de facto que lhe saem ao caminho, restaurando o regime anterior à reforma como aquele que realmente está em vigor. Remetendo aos advogados acórdãos deliberada e ostensivamente punitivos do acto de recorrer sobre a matéria de facto, está a caminho de levar a cabo o genocídio de uma categoria de recursos, e de exonerar as Relações, por acto de vontade própria, de uma função que lhes é cometida por lei, a de "verdadeira 2.ª instância".
Em resultado de tudo isto, a justiça cível piorou nos últimos anos: há hoje mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo), e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido. Engana-se pois o dr. Silva Leal, ao temer um retrocesso. Já é um facto consumado. Os desembargadores que tem ouvido apenas pretendem do Ministério da Justiça a certidão de óbito da espécie de recursos que vêm matando sem descanso. A consagração legal do poder que se atribuem de des-legislar o que não é do seu agrado nas leis de processo. Por mim, nem sei que dizer perante o arrojo triunfante disto. Pergunto-me de onde veio e como se instalou, e a resposta não condena apenas os seus autores. Condena todos os homens de leis, por termos deixado cair um manto de silêncio, tão raramente rompido, sobre tão grave desafio ao direito.

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