A justiça cível piorou nos últimos anos: há mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo) e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido
O sindicato dos magistrados do MP promoveu recentemente uma tertúlia no Majestic. A dado passo ocorreu uma consonância. Silva Leal, que preside à Ordem dos Advogados no Porto, revelou que tem ouvido desembargadores pugnar pelo fim dos recursos em matéria de facto, o que, no seu entender, seria um retrocesso violador dos direitos de defesa dos cidadãos. O conselheiro Simas Santos acabaria por subscrever estas preocupações, acentuando que "as Relações estão a ter muita dificuldade para apreciar a matéria de facto. Há uma rebeldia", frisou. O sentido disto será um enigma para muita gente. Pois posso esclarecer, com o conhecimento de causa de quem já viu recursos dessa espécie serem sumariamente abatidos pela "rebeldia".
No século XX, emergiu nos países da common law e na Europa Ocidental um modelo de processo judicial que conta entre as suas regras (a) com o registo de toda a prova, incluindo os depoimentos prestados oralmente em audiência, e (b) com a garantia de recurso para um tribunal superior do julgamento sobre os factos pelo tribunal de 1.ª instância. O processo português, todavia, foi-se mantendo à margem da corrente, não obstante haver quem, na faculdade e na advocacia, deplorasse a insuficiente garantia de justo processo, decorrente da falta de documentação de toda a prova e duma plena dupla jurisdição. Argumentava-se, para não dar ouvidos àquelas vozes, que o julgamento dos factos por um colectivo de juízes já era uma garantia de justiça eficaz.
As coisas mudaram em 1995. Na revisão do processo civil então aprovada, garantiu-se a gravação dos depoimentos e a real possibilidade de impugnar o julgamento em matéria de facto no recurso para a Relação. Em contrapartida, o tribunal colectivo foi praticamente abolido, passando as causas a ser julgadas pelo juiz singular (a quem a literatura italiana, para não haver engano, chama monocrático). A última parte foi um erro tremendo. Nada aconselha um desinvestimento nas condições para um processo justo na 1.ª instância por troca com uma maior garantia do seu controlo pela Relação. O ideal é que uma causa seja bem julgada na 1.ª instância. A colegialidade cultiva e ilumina. A solidão do poder de dirigir o processo e julgar a causa atrofia e vicia. Em resultado disto, a justiça cível piorou na 1.ª instância.
Mas o pior estava para vir. Há quem veja no poder de julgar com inteira liberdade as controvérsias de facto, isento de escrutínio ou sindicância, limitado apenas pela sua consciência, a pedra de toque do poder, da independência e da autoridade do juiz, sintetizada neste sugestivo mote: o juiz é soberano em matéria de facto. Para esta ideia autocrática da justiça e do juiz, com adeptos fortes nos tribunais superiores (e na direcção da associação sindical dos juízes), a reforma de 95, ao admitir que o juízo sobre os factos seja passível de impugnação e controlo, representa uma intolerável desautorização do juiz. A esta rejeição ideológica, somou-se a rejeição pelos desembargadores da especialização da Relação como 2.ª instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1.ª instância. Confesso que o motivo disto me escapa. A Relação vivia numa penumbra entre dois focos. A questão de facto era arrumada na 1.ª instância. Na questão de direito, era preponderante o Supremo. A reforma de 95 dá à Relação a oportunidade de fazer a diferença, em terreno vedado ao Supremo: inspirar um modelo inteligente e competente de julgar as controvérsias de facto. E a Relação só pensa em reverter à condição anterior! Não entendo.
Mas já posso explicar o que é a "rebeldia" das Relações a que aludiu o conselheiro Simas Santos. A abrir, é uma proclamação de objecção de consciência a controlar a decisão do juiz de 1.ª instância, servida por uma linha de pensamento de fabrico próprio, indefensável e ptolomaica, nascida para servir o juiz e o desembargador, não para servir a justiça, adoptada por todas as Relações a uma velocidade inédita na formação duma jurisprudência, e sobranceiramente reiterada a cada acórdão, não obstante os avisos que vão surgindo de que aquilo rasga mais de 100 anos de estudos jurídicos.
A fechar, a "rebeldia" tem vindo a anular um regime legal com uma orientação dita jurisprudencial, criando uma caricatura de jurisprudência para tornar a lei inoperante. Chacina sistematicamente os recursos sobre a matéria de facto que lhe saem ao caminho, restaurando o regime anterior à reforma como aquele que realmente está em vigor. Remetendo aos advogados acórdãos deliberada e ostensivamente punitivos do acto de recorrer sobre a matéria de facto, está a caminho de levar a cabo o genocídio de uma categoria de recursos, e de exonerar as Relações, por acto de vontade própria, de uma função que lhes é cometida por lei, a de "verdadeira 2.ª instância".
Em resultado de tudo isto, a justiça cível piorou nos últimos anos: há hoje mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo), e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido. Engana-se pois o dr. Silva Leal, ao temer um retrocesso. Já é um facto consumado. Os desembargadores que tem ouvido apenas pretendem do Ministério da Justiça a certidão de óbito da espécie de recursos que vêm matando sem descanso. A consagração legal do poder que se atribuem de des-legislar o que não é do seu agrado nas leis de processo. Por mim, nem sei que dizer perante o arrojo triunfante disto. Pergunto-me de onde veio e como se instalou, e a resposta não condena apenas os seus autores. Condena todos os homens de leis, por termos deixado cair um manto de silêncio, tão raramente rompido, sobre tão grave desafio ao direito.
terça-feira, 27 de junho de 2006
A revolta das Relações
Por Rui Macedo (advogado), no Público de hoje
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário