Este Verão trouxe-nos uma novidade na luta contra o crime: a “Unidade de Missão da Reforma Penal”. Terá por missão redigir um projecto de lei que delimitará a relação de competências entre o Governo e o Parlamento na definição da política criminal. Apesar de ser missão dos órgãos de soberania encarregues da governação definir as políticas do país, só agora a área criminal parece ter merecido tamanha ousadia. Depois de anos de inibição assente no dogma de aquele ser assunto apenas para o ministério público, coadjuvado pelas polícias (como se estas não dependessem do executivo), reconhece-se, por fim, que há matérias que não podem ser deixadas ao acaso do destino. Desde logo, porque também nos tribunais a quantidade do que se faz não é garantia de qualidade.
É necessário, porém, que o espírito de missão não cegue os missionários fazendo-os reféns das discussões teóricas que se quedam nas grandes causas. Quantas vezes são as bagatelas penais que ditam a diferença na segurança dos cidadãos.
O serviço de turno que, em tempo de férias, ocupa os tribunais constitui um fiel barómetro do estado da política criminal que por cá se faz. Em poucos dias oferece um conhecimento raro de como se faz investigação, quem deveras a conduz, e quais as prioridades já ditadas pela prática. Ali se define, por exemplo, o destino de um estrangeiro que seja surpreendido a entrar em território nacional munido de passaporte falso. Evidenciam-se as diferenças para o procedimento legal destinado aos que se apresentam na fronteira sem nenhum documento. Percebe-se que de nada servirá sujeitar os aeroportos a vigilâncias policiais redobradas se os resultados observados não obtiverem da lei a potenciação de uma resposta adequada nos tribunais.
É legítimo esperar que a instituição de uma política criminal permita dar resposta a estas e outras preocupações de eficácia no combate ao crime. Em determinadas funções de especial melindre e insubstituível relevo na investigação criminal, hoje classificadas de métodos pró-activos, deverá prevalecer o profissionalismo responsável ou será suficiente um voluntarioso amadorismo? A distribuição de competências entre as várias polícias deverá obedecer exclusivamente a critérios de eficiência e adequar-se à capacidade profissional e discrição já demonstradas no passado ou ceder a mesquinhas disputas de poder onde os méritos se medem pela publicidade? O êxito de uma investigação não se avalia pelo número de detenções feitas, nem mesmo quando conta com a atenção empenhada dos jornais e das televisões. Importa não esquecer o resultado do julgamento.
Há dias, o encarregado da protecção de dados pessoais na Alemanha, Peter Schaar, observava, em entrevista dada a um periódico daquele país, que os políticos deveriam reflectir bem nas exigências que introduzem nas leis, já que muitos projectos acabam por nunca conduzir ao objectivo para que foram definidos. E, comentando a recente decisão do Tribunal Constitucional alemão ao declarar nula uma lei da Baixa Saxónia que permitia a realização de escutas telefónicas em momento prévio à instauração de um procedimento criminal, defendia que nem tudo o que é recolhido pelos serviços de informações é matéria para a investigação penal.
Ainda que o veredicto fosse de inconstitucionalidade, aquela lei permitiu relançar uma discussão importante na Alemanha. A nossa legislação não contempla a realização de escutas telefónicas prévias à instauração do processo crime, ou mesmo agentes encobertos em serviços de informações (estes estão reservados a um departamento específico da PJ), mas nem por isso as novas exigências de combate ao crime organizado e ao terrorismo devem ser ignoradas. Só no campo da prevenção mundial pode travar-se uma luta contra uma guerra que não admite resposta igual. E não será a mera proclamação dos direitos dos cidadãos como fundamento para a não permissão de determinadas diligências de investigação processual que assegurará, por si só, a sua efectividade numa dimensão internacional de combate ao terror. A clarificação, também por cá, daquilo que será vocação dos tribunais e vocação das polícias de investigação e a sua distinção da que cabe aos serviços de informações é hoje imperativo incontornável, mesmo que o assunto seja delicado e impopular. O que não deve é contar-se com a cegueira e a passividade dos tribunais para que aquelas diligências sejam validadas, no fundo apenas formalmente.
Ora, para lutar contra este estado de coisas é efectivamente necessário espírito de missão. E passar dos projectos à acção antes que, como temiam os antigos gauleses, o céu nos caia em cima da cabeça.
terça-feira, 6 de setembro de 2005
A missão da reforma penal
Por MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS, juiz de direito, no Independente de 2-9-2005
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3 comentários:
Percebo o problema que a juiza aponta, no que se refere às escutas. Percebo ainda a preocupação quanto à legalidade e à eficácia da investigação.
Fico porém, perplexo quando me lembro que em 17.11.2003, a mesma juiza em entrevista ao Público, dizia que o "o papel de um juiz de instrução é saber dizer não às polícias e ao MP."
Fico a pensar no que isso significa e no que significam agora as ideias que transmitiu no artigo, aliás bem escrito.
E não quererá dizer exactamente o mesmo?
Veja-se este parágrafo do artigo:
"O que não deve é contar-se com a cegueira e a passividade dos tribunais para que aquelas diligências sejam validadas, no fundo apenas formalmente."
Na dúvida quanto ao sentido da(s) expressão(ões) a (re)leitura do livro da Mata-Mouro dá uma preciosa ajuda.
O problema é este:
No primeiro caso, parece que juiza olhava para a garrafa meio-vazia.
Agora, olhará para ela meio-cheia.
Já é alguma coisa, parece-me. Mas suscita-me a dúvida se a mudança se terá ficado a dever a uma pura e simples volubilidade. Coisas.
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