sexta-feira, 8 de abril de 2005

A reforma da justiça (penal)

Impossibilitado de vir aqui, nos últimos dois dias, deixa-se agora o texto do Dr. Simas Santos, de imprescindível leitura, publicado no Público de ontem:

Impõe-se a inversão do rumo actual quanto ao valor dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que uniformizam a jurisprudência e que consentem, no domínio penal, que um juiz de 1.ª instância possa, no dia imediato à publicação do acórdão de uniformização, recusar o seu cumprimento, com base em argumentos já ponderados, desencadeando-se depois um pesado e complexo mecanismo de controlo

Do programa do Governo para a justiça tem sido dado todo o destaque à redução das férias judiciais de Verão. Muito foi dito sobre essa questão, mas o que sobreleva é a sua natureza de afirmação emblemática da vontade de intervir no domínio da eficácia da justiça.

E deve reconhecer-se que esse é um ponto fundamental sobre o qual devem intervir, não só o Governo e a Assembleia da República, com a adopção de medidas que permitam a sua promoção, mas também os magistrados e os respectivos conselhos superiores, interiorizando, ainda mais, a ideia de que a eficácia do sistema não pode deixar de ser sindicável, sem que isso signifique diminuição da independência do poder judicial.

As medidas que sejam tomadas não podem deixar de ser, diferentemente do que é hábito entre nós, acompanhadas de perto, de forma a serem corrigidas ou desenvolvidas, se necessário, em tempo útil. Medidas, já afloradas em público, como o redesenho do mapa judiciário podem contribuir, sem dúvida, para a eficácia, mas, pela sua complexidade e pelas resistências que inevitavelmente geram, devem ser antecedidas da adopção de regras de aplicação imediata que permitam ao Ministério da Justiça e aos conselhos superiores ensaiar soluções provisórias de agregação ou divisão de comarcas, que antecipem a reorganização judiciária e confiram ao sistema a plasticidade exigida. Com o mesmo objectivo impõe-se a urgente revalorização das procuradorias da República e dos respectivos procuradores, como unidades intermédias fundamentais da estrutura do Ministério Público, dotadas de meios e com uma definição muito mais clara das suas funções e poderes.

Mas, como as hesitações do investimento estrangeiro nos sugerem, a eficácia da justiça postula, também, uma maior previsibilidade do desfecho de um eventual litígio judicial. Daí que se imponha a inversão do rumo actual quanto ao valor dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que uniformizam a jurisprudência e que consentem, no domínio penal, que um juiz de 1.ª instância possa, no dia imediato à publicação do acórdão de uniformização, recusar o seu cumprimento, com base em argumentos já ponderados, desencadeando-se depois um pesado e complexo mecanismo de controlo. Tudo aponta, pois, para a necessidade de reforçar a força obrigatória para os tribunais judiciais dos acórdãos uniformizadores da jurisprudência. Mas também a eficácia ligada à agilidade do sistema impõe que, no crime, os conselheiros possam desencadear por si, em momento oportuno, a fixação de jurisprudência.

A "monitorização" de que já falámos também passa pelo reconhecimento, compreensão e exportação das boas práticas, que também se encontram a todos os níveis do aparelho judicial, e pela consideração da experiência dos operadores judiciários, designadamente pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, dada a sua especial tarefa de velar pela correcta aplicação da lei.

Neste domínio, importa realçar que o Partido Socialista, uma vez desencadeado, durante o Governo Barroso, o processo de revisão do Código de Processo Penal, teve em devida conta, no projecto que apresentou, o longo texto elaborado pelos conselheiros das secções criminais, o que não aconteceu com o Governo e os outros partidos. Embora se não concorde com a parte inicial desse projecto, designadamente no que se refere à posição processual e poderes do Ministério Público, num modelo que se afigura de difícil compatibilização com a Constituição, não se pode deixar de salientar a atenção prestada aos elementos fornecidos pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e ao esforço desenvolvido para procurar resolver os problemas detectados, esforço que se espera não seja agora esquecido.

Mas a eficácia pode ainda ser objecto de consideração noutros planos, que a evolução jurisprudencial recente tem aberto. Com efeito, tem-se verificado uma tendência de "jurisdicionalização" do inquérito cometido ao Ministério Público, que não se vê, designadamente à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que vá regredir. Mas, grande parte das provas recolhidas no inquérito, assim tornado menos ágil, não valem, apesar disso, em audiência de julgamento, o que leva a perguntar se não faz sentido reconsiderar outras formas mais simplificadas de investigação criminal, designadamente para a criminalidade menor, como o inquérito preliminar já ensaiado entre nós (Ds.-Ls. 605/75, 377/77 e 402/82 e Lei 25/81), devidamente actualizado, assim se colhendo frutos da experiência entretanto adquirida pela Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana num inquérito que perderia o seu formalismo e poderia constar de um mero relatório detalhado das diligências efectuadas que habilitasse à dedução da acusação ou arquivamento pelo Ministério Público.

Também a ideia, construída pela jurisprudência, da necessidade de documentação da prova em julgamento, mesmo com tribunal colectivo, alimentada pela ideia do duplo grau efectivo de jurisdição em matéria de facto, parece retirar razão de ser à própria existência do tribunal colectivo: mais fiabilidade da apreciação da prova assegurada por três juízes, que é agora substituída por reexame mais amplo da 2.ª instância. Seria assim de, por um lado, apurar as técnicas de documentação da prova, com recurso, v.g., a sistemas de reconhecimento de voz, e, por outro, acabar com os julgamentos com tribunais colectivos, libertando inúmeros juízes que permitiriam reforçar nas relações um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Finalmente, e no que respeita ao Supremo Tribunal de Justiça, importaria restringir os recursos, mediante regras claras, e reforçar o seu papel como uniformizador da jurisprudência, que voltaria a ser obrigatória para os tribunais judiciais, como se adiantou.

Manuel Simas Santos, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça

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