Tentativa de violação — legitimidade da assistente — suspensão da execução da pena — danos não patrimoniais — juros moratórios
1 – Se a assistente funda a impugnação da indemnização arbitrada numa maior ilicitude da conduta do arguido, do que a considerada pelo Tribunal a quo. E, por outro, invoca o medo que lhe causa a manutenção do arguido em liberdade, pela possibilidade de este voltar a praticar os mesmos factos, estabelece suficientemente um interesse próprio em agir, que lhe atribuiu legitimidade para recorrer desacompanhada do Ministério Público.
2 – A suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos.
3 – Só deve ser decretada quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas nos textos transcritos, ser essa medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade, atendendo-se nesse juízo de prognose:
— A personalidade do réu;
— As suas condições de vida;
— A conduta anterior e posterior ao facto punível; e
— As circunstâncias do facto punível.
Isto é, todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do réu, atendendo somente às razões da prevenção especial.
4 – Por via de regra, não será possível formar o juízo de prognose favorável de que se falou, em relação a arguido, não primário, na ausência de confissão aberta onde possam ser encontradas razões da sua conduta e sem arrependimento sincero em que ele pode demonstrar que rejeita o mal praticado por forma a convencer que não voltará a delinquir se vier a ser confrontado com situação idêntica. Mas, por outro lado, nada impõe a aceitação pelo agente da própria culpa como condição indispensável à suspensão. Certo que ela abonará um prognóstico sobre a vontade de regeneração e a desnecessidade do efectivo sofrimento da pena para a reprovação; mas sem dúvida também que a sua falta não impede tal prognóstico, desde que as circunstâncias do caso permitam, apesar disso, a formulação desse juízo de prognose favorável.
5 – Tendo o arguido de 20 anos trabalho certo, está inserido social e familiarmente, o que permitiu ao Tribunal recorrido concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão pode realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição num caso de violação tentada, juízo que não merece censura por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
6 – Mas a tutela do medo de que passou a sofrer ofendida, por causa destes factos, impõe que se acompanhe a suspensão da pena das seguintes regras de conduta a observar no período da suspensão: não frequentar o arguido a zona onde se situa a residência e local de trabalho da ofendida e não contactar com ela;
7 – Os danos não patrimoniais são determinados nos termos do n.º 3 do art. 496.º, do C. Civil: o quantitativo é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, devendo ter-se em conta também as regras de boa prudência, a justa medida das coisas, a criteriosa ponderação das realidades da vida, como se devem ter em atenção as soluções jurisprudenciais para casos semelhantes e nos tempos respectivos, limitando então os Tribunais de recurso a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.
8 – Quando o crédito é ilíquido a norma aplicável é a do n.º 3 do mesmo artigo 805.º do C. Civil (se a falta de liquidez for imputável ao devedor, não há mora, enquanto o crédito não for líquido; se se tratar de responsabilidade pelo risco ou por facto ilícito, o devedor constitui-se em mora desde a citação, se não estiver em mora.)
Ac. de 9.12.2004 do STJ, proc. n.º 3118/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
Habeas corpus — irregularidade da falta de gravações — anulação da decisão condenatória — tráfico e droga — prazo de prisão preventiva
1 - A falta de gravação de certos depoimentos, por anomalia técnica, é uma irregularidade que afectou um acto exterior ao processo, mas condicionante de um direito fundamental dos sujeitos processuais, nomeadamente o arguido, na medida em que, não se encontrando gravados certos depoimentos, em virtude da tal anomalia técnica, o tribunal superior não pode reapreciar a prova produzida.
2 - Essa irregularidade não exigiria que o Tribunal da Relação invalidasse o julgamento, embora parcialmente, e a decisão condenatória, para que fosse não só repetida a prova não gravada (eventualmente a prova toda, se não pudesse constituir-se o mesmo tribunal colectivo), como também reapreciada toda a prova repetida e outra que o tribunal viesse a reputar digna de ser produzida, elaborando no final um novo acórdão, de acordo com tal reapreciação.
3 - Rigorosamente, a repetição do julgamento deveria ter sido determinada apenas para que a prova que não ficou registada, por anomalia técnica, fosse agora registada, para assim se possibilitar ao tribunal de recurso o controle da decisão, quer no aspecto de facto, quer no aspecto jurídico. Tal implicaria que, após tal registo, o processo fosse devolvido sem mais (isto é, sem nova apreciação da prova), ao Tribunal da Relação, pois a prova já foi anteriormente produzida e apreciada de forma válida, e do que se trataria agora seria apenas de colmatar uma falha «técnica» (não em sentido técnico-jurídico, mas em sentido estritamente técnico, isto é, relativo a uma operação mecânica, envolvendo a utilização de um processo tecnológico).
4 - Tendo, porém, a Relação invalidado o julgamento (parcialmente) e a decisão condenatória, não se pode dizer que esta seja inexistente ou que, sendo nula, não produz efeitos jurídicos alguns. Há efeitos jurídicos que mesmo a decisão nula produz: por exemplo, em matéria de proibição de «reformatio in pejus», não podendo o arguido ser condenado em pena mais grave no novo julgamento, se o recurso foi só interposto por ele, ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido.
5 - Ora, se mesmo no caso de ter sido anulado o julgamento por força de um vício sancionado legalmente com a nulidade, se tem entendido nesta Secção que a anulação não faz com que o prazo máximo de prisão preventiva «encolha», por regressão à fase anterior, como se não tivesse havido condenação em primeira instância, muito mais não há-de ter esse efeito a invalidade parcial do julgamento e subsequente invalidade da decisão condenatória, por força de uma irregularidade consistente na falta de gravação de certos depoimentos, por uma anomalia técnica no sistema de reprodução.
6 - Mesmo, porém, que assim não fosse, estamos não só em face de um crime que é punível com uma pena que, no seu máximo, excede 8 anos de prisão, como os crimes de tráfico dos artigos 21.º a 24.º e 28.º do DL 15/93, de 22/1, consideram-se equiparados a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada (art. 51.º, n.º 1 deste último diploma). E a acrescer a isso, reportando-se o procedimento a um desses crimes, aplica-se o disposto no n.º 3 do art. 215.º do CPP, por expressa remissão do art. 54.º, n.º 3 do DL 15/93, sem que haja necessidade de verificação e declaração judicial de «excepcional complexidade», em conformidade com a jurisprudência fixada por este Tribunal no Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/2004, publicado no DR 1.ª S/A de 2/4/04.
7 - Por conseguinte, o prazo máximo de prisão preventiva, mesmo a valer a tese do requerente de que o processo retrotrai à fase anterior, não foi atingido, pois é de 3 anos o prazo de prisão preventiva até haver condenação em 1ª instância.
Ac. de 9.12.2004 do STJ, proc. n.º 4535/04 da 5ª Secção, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa
Princípio do juiz natural — recusa de juiz — requisitos — discordância jurídica do requerente
1 — A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.°, n.° 9 − “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”).
2 — Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos desse princípio levou à necessidade de os acautelar através de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz também garantidos constitucionalmente (art.ºs 203.° e 216.°), quer como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas. Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite, quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
3 — A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, com base na intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40.º do CPP.
4 – A simples discordância jurídica em relação aos actos processuais praticados por um juiz, podendo e devendo conduzir aos adequados mecanismos de impugnação processual, não pode fundar a petição de recusa, pois não basta um puro convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se verifique a suspeição. Tem de haver uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada causa de suspeição, pois do uso indevido da recusa resulta, como se viu, a lesão do princípio constitucional do Juiz Natural, ao afastar o juiz por qualquer motivo fútil.
Ac. de 9.12.2004 do STJ, proc. n.º 4308/04-5, Relator: Cons. Simas
Acórdão da Relação — alteração da matéria de facto provada — falta de referência expressa — nulidade
1 – Às decisões proferidas, por via de recurso, pelos Tribunais Superiores, só é aplicável o n.º 2 do art. 374.º por via da aplicação correspondente do art. 379.º, que por sua vez se refere a aplicação do art. 374.º, sendo-lhes aplicáveis as normas do art. 425.º, que no seu n.º 4 só refere directamente os art.ºs 379.º e 380.º, como correspondentemente aplicáveis e as normas do nº 3 do art. 420.º para os acórdãos de rejeição e do n.º 5 do art. 425.º para os acórdãos absolutórios [art. 400.º, n.º 1, al. d)] confirmativos da decisão da 1.ª Instância, sem qualquer declaração de voto.
2 – Mas se a Relação decide pela alteração da matéria de facto fixada pela 1.ª Instância, deve então fixar os novos factos a atender no julgamento do aspecto jurídico da causa, como o prescreve o n.º 2 do art. 374.º, aplicável nesses termos, incorrendo se não o fizer, a respectiva decisão na nulidade prevista no art. 379.º,n .º 1, al. a) do CPP.
Ac. de 9.12.2004 do STJ, proc. n.º 3993/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
Princípio do juiz natural — recusa de juiz desembargador — requisitos — revogação da aplicação da prisão preventiva — recurso da decisão de não pronúncia — imparcialidade objectiva
1 — A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.°, n.° 9 − “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”).
2 — Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos desse princípio levou à necessidade de os acautelar através de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz também garantidos constitucionalmente (art.ºs 203.° e 216.°), quer como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas. Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite, quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
3 — A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, com base na intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40.º do CPP.
4 – A intervenção em recurso de Juízes Desembargadores que revogam o despacho que aplicou a prisão preventiva a uma arguido, por entenderem que se não verificam indícios suficientes da prática por este dos crimes imputados, num juízo autónomo e detalhado de tais indícios deve levar à sua recusa, nos termos do art. 43.º, n.º 2 do CPP, no recurso posterior interposto da decisão de não pronuncia desse mesmo arguido, por constituir um caso paralelo “inverso” do previsto na parte final do art. 40.º do CPP.
5 – Não estando em causa a imparcialidade subjectiva dos julgadores que importava ao conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que se presume até prova em contrário, não se verifica a imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas por forma a preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
Ac. de 9.12.2004 do STJ, proc. n.º 4540/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
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