sexta-feira, 23 de junho de 2023

Tudo Menos Economia

 

Ricardo Cabral

20 de Julho de 2014, 11:05

Por

Todos iguais, todos diferentes

Viajar e sobretudo viver noutras culturas, expande horizontes e permite apreender diferenças que, de outra forma, não seriam perceptíveis. Começa porque, até mesmo debaixo do verniz da língua comum, existem diferentes dialectos ou acentos. Mas é mais profundo do que isso. Descobri com o tempo que existem mensagens subliminais específicas – conhecimento social tácito – que caracterizam o comportamento dos povos. Em pelo menos parte dos Estados Unidos, por exemplo, prevalece a cultura do ser individualmente responsável pelos seus actos, de que o indivíduo pode fazer a diferença, de que o nosso futuro só depende de nós. Tais crenças parecem contraditórias com aquela imensidão de território e de pessoas e com uma “máquina” da lei omnipresente e avassaladora. E com o facto da opinião pública parecer seguir colectivamente modas, “flip-flopping” com o vento. Mas, quase todos as seguem, resultando numa pobreza de diversidade de opinião que impressiona. Na Alemanha, surpreende a cultura do silêncio, do só falar quando relevante e só quando se tem a certeza do que se vai dizer, do pensar antes de falar, do planear antes de começar a fazer e do dizer “não” e não “sim”. Em Portugal, surpreende a cultura do dizer sim, mesmo quando as partes preferiam dizer não, de começar a fazer antes de se pensar o que se quer fazer, de reverenciar o que vem de fora ou de cima, de ter medo de arriscar dizendo algo novo e sobretudo de ter medo de perder a face ao fazê-lo. Vá se lá entender tudo isto … mas é bom sabê-lo.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Bento Gonçalves da Cruz (Peireses, Chã, Montalegre, 22 de Fevereiro de 1925 - Porto, 25 de Agosto de 2015) foi um grande escritor e médico português.

Bento da Cruz
Nascimento22 de fevereiro de 1925 (98 anos)
Peireses, ChãMontalegre
Morte25 de agosto de 2015 (90 anos)

Biografia

Bento da Cruz (Bento Gonçalves da Cruz), filho de Manuel Gonçalves da Cruz e Maria Alves, pequenos proprietários rurais (chamados de «Os Marinheiros»), nasceu em Peireses (Peirezes, na grafia antiga), uma modesta aldeia pertencente à freguesia de S. Vicente da Chã, concelho de Montalegre, a 22 de Fevereiro de 1925. Desde cedo foi iniciado no trabalho do campo e na pastorícia, único sustento da família. A miséria e as dificuldades que então viu no povo do seu tempo irão marcar profundamente toda a sua obra. Segundo os seus contemporâneos, era desejo de seus pais ter um filho presbítero de tal modo que quase todos os filhos varões frequentaram o Seminário. O Povo recorda ainda hoje o sacrifício que os progenitores empreenderam para que eles pudessem estudar.

Assim, depois de concluir os primeiros estudos, ingressou a 16 de Outubro de 1940, na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges Beneditinos, disposto a seguir a vida religiosa. Aí concluiu com distinção o antigo Curso dos Seminários e foi director literário das revistas estudantis «O Colégio» e «Claustrália». Leu os Grandes Clássicos da Antiguidade. Entrou no noviciado em 1945. Porém, terminado este, decidiu abandonar a ordem em 1946, curiosamente também no dia 16 de Outubro.

Manteve cordiais relações com os Monges de Singeverga, onde participou regularmente em encontros de antigos alunos.

Conta sobre esse período: "fui cumpridor da regra e apontado como exemplo. A minha saída do seminário pode ter afectado alguns condiscípulos que me tomaram como referência. A maior pena que me ficou desse tempo foi não ter vivido essa extraordinária experiência de vida na aldeia entre os 15 e os 21 anos. Senti toda a vida a falta desse percurso de juventude." A sua primeira Obra « Hemoptise» dá-nos a conhecer esta etapa da sua caminhada.

Dois anos depois matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Concluída a formatura, abriu consultório de clínica geral em Souselas, no concelho de Coimbra, em 1955. Pouco depois, em 1956, estabeleceu-se no Barroso, praticando clínica geral e estomatologia. Teve consultório na aldeia de Pisões, onde então se empreendia a construção de uma das maiores albufeiras do País, a Barragem do Alto Rabagão (concluída em 1964), hoje «Empreendimento Hidroélectrico do Alto Rabagão», onde prestou serviço aos muitos trabalhadores que a construíram.

Como Médico percorreu toda a região de Barroso. Fica conhecido pelo serviço aos pobres a quem não levava dinheiro e até oferecia os medicamentos. Existe um vasto leque de testemunhos de como, naquela terra isolada, curou e salvou inúmeras vidas.

Em 1971 fixa-se no Porto, onde se manteve até ao final da vida, e onde exerceu medicina até se reformar. Depois do 25 de Abril de 1974, funda o jornal «Correio do Planalto». Bento da Cruz nunca se desligou da aldeia e do mundo rural em que nasceu. Visita-a regularmente e nela gozou sempre as férias e os tempos de descanso. Nela se inspira e escreve. Os muito famosos «Prolegómenos», crónicas que manteve no seu Jornal (das quais resultaram três obras com esse título), abordam na sua maioria temáticas rurais e histórias de antanho. É frequente encontrá-lo nos seus muitos passeios pelos campos e velhos caminhos da terra. Reconstruiu a casa de seu avó de forma rústica e tudo nela evoca o Barroso de antigamente.

Foi nomeado Patrono da Escola Secundária de Montalegre (Escola Secundária Dr. Bento da Cruz), onde na primeira década do terceiro milénio lhe foi dedicado um busto. Algumas ruas da vila foram também batizadas com o seu nome. Na portaria da escola está, numa placa de mármore, uma das suas mais belas afirmações: «O Barroso é um Paraíso, o único ou um dos poucos que ainda existem à face da terra.»

Bento da Cruz é, considerado, um dos maiores escritores Transmontanos de todos os tempos. Faleceu, na sua casa do Porto, a 25 de Agosto de 2015 e foi sepultado na sua aldeia de Peirezes da Chã no dia 27.

Obra

Romance e contos

  • Hemoptise, sob o pseudónimo de Sabiel Truta, 1959
  • Planalto em Chamas, 1963
  • Ao Longo da Fronteira, 1964
  • Filhas de Loth, 1967
  • Contos de Gostofrio, 1973
  • O Lobo Guerrilheiro, 1980
  • Planalto do Gostofrio, 1982
  • Histórias da Vermelhinha, 1991
  • Planalto de Gostofrio, 1992
  • Histórias de Lana-Caprina, 1994
  • O Retábulo das Virgens Loucas, 1996
  • A Loba, 1999
  • A Lenda de Hiran e Belkiss, de 2005
  • A Fárria, de 2010 (comemoração dos 50 anos de vida Literária)

Biografia

  • Victor Branco: Escritor Barrosão, Vida e Obra, 1995
  • Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os Montes, 2005
  • Camilo Castelo Branco: Por terras de Barroso e outros lugares, 2012

Crónicas

  • Prolegómenos, 2007
  • Prolegómenos II, 2009
  • Prolegómenos III, 2013

NINGUÉM AS VESTE QUE AS NÃO BORRE...

Após um mês de sol apareceram os nevoeiros. A exemplo da Primeira República Francesa, também em Barroso se podia chamar Brumário ao segundo mês do ano.

Brumário por causa das brumas do «nosso descontentamento». Embirro sobremaneira com os dias em que a aldeia acorda envolta em nevoeiro. Era a coberto dele que, outrora, os lobos desciam dos montes e atacavam os cães nas eiras.

O medo que nós tínhamos aos lobos! Nós, os pequenos pastores. «Viste lobos?» — perguntávamos, na galhofa, àqueles que, por resfriado ou qualquer outra patologia das cordas vocais, apareciam afónicos. Isto porque, quem visse lobo, perdia a fala.

A mim, em boa hora o diga, nunca me aconteceu. Mas fartei-me de berrar a lobo.

Um dia por outro, no relativo silêncio dos montes, ecoava o alarme: «Lobo! Aí vai Lobo! — E logo de todos os pontos apareciam vozes: «Cerque, Ti António!» «Dá-lhe fogo, Joaquim!» — «Agarra cão!»

Por vezes não se via lobo nenhum. Outras, lá ia ele, disparado como uma seta, em diagonal, direito à serra.

Eu, em garoto, nunca arrostei com um lobo. E foi pena. Foi pena porque, assim, nunca tive ensejo de pôr em prática a teoria que o Avô me ensinara. Um dia fui dar com ele sentado no escano a calçar-se para ir à caça.

— O Paizinho não tem medo aos lobos? — perguntei.

E o Avô, que era muito divertido, respondeu:

— Tenho lá algum medo aos lobos? Sabes o que lhes faço?

— Não.

— Repara.

E o Avô, enfiando a mão no carpim, virou-o do avesso. Depois, arregaçando a manga do braço direito, exemplificou:

— Enfio-lhes a mão goelas abaixo, agarro-os gela tripa do cu e viro-os com o de dentro para fora.

No dia seguinte, estando eu à lareira a ensaiar a manobra numa peúga: «Eh, lobo!» vem de lá a mãe e espeta-me dois tabefes:

— Mas tu calças-te para ires com o gadinho, ou estás de pantomina?

Doutra feita, andando eu com as vacas em Fontefria, aparece o Barrolo com a rês. Pusemo-nos a jogar a choca e o rebanho foi andando até desaparecer para além dum cômoro de maninho. Nisto, passa a caminheta das cinco da tarde. Diz o Barrolo:

— Tenho de ir virar a rês, se não ainda vem algum carro e desgraça-me.

E mete a correr, pau no ar e goelas abertas:

— Chiba aí ei... ei... i.

Ainda mal tinha desaparecido, reaparece, a tropeçar nas próprias pernas, cabelos no ar, olhos esbugalhados, boca aberta.

— Que foi, Barrolo? Viste lobo?

Ele abria e fechava a mandíbula, como sapo das hortas em dias de calor ou náufrago de água doce que perde o pé, mas não dizia nada.

— Levou-te algum richelo?

Numa voz roufenha, de cartilagens secas, o Barrolo lá conseguiu articular:

— Uma ovelha!

— Rais-ta parta! Porque não chamaste por mim?

— Que é que tu lhe fazias?

Eu exemplifiquei a manobra do Avô:

— Virava-o com o de dentro para fora.

— Fia-te. Se o visses acontecia-te o mesmo que a mim.

Olhei para ele com mais atenção:

— Não me digas que borraste as calças?

— Ó Marinheiro? Não fales nisto a ninguém, que é uma vergonha...

— Oh, Barrolo? Não faças caso. Isso acontece a qualquer um. «Ninguém as veste que as não borre... É dos livros.»


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 128 e s.)

Vou dedicar-me a outros assuntos, diferentes dos anteriores

 Antes de tudo vou experimentar se ainda trabalho bem. De qualquer maneira vou deixar o direito no essencial. Até  brevemente!