Contrariamente ao que se poderia pensar, o Supremo Tribunal norte-americano
(ST) não se ocupa só de questões de saúde.
Na passada segunda-feira, o ST tomou uma importante decisão no caso Miller
v. Alabama em que, aplicando a lei federal - a Constituição norte-americana -,
deu maiores poderes aos tribunais estaduais e protegeu os direitos da população
juvenil.
Estavam em apreciação os casos de Kuntrell Jackson e de Evan Miller, que, à
data dos factos, ocorridos no Alabama, tinham ambos 14 anos de idade.
O primeiro, em 1999, conjuntamente com outros dois jovens de 14 e 15 anos,
assaltaram uma loja de vídeos, tendo o mais velho deles morto a tiro o
empregado. Jackson foi julgado pelos crimes de roubo agravado e homicídio em
primeiro grau e condenado a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade
condicional.
O segundo, em 2002, conjuntamente com outro jovem, depois de estarem a
beber e a fumar marijuana com um homem de 52 anos na caravana deste, tentaram
assaltá-lo quando este estava a dormir. Mas ele acordou, pelo que o agrediram
com um bastão debaseball e a seguir pegaram fogo à caravana, tendo o homem
morrido queimado. Miller foi igualmente condenado a prisão perpétua sem
possibilidade de liberdade condicional.
Tendo em conta a gravidade dos crimes, os dois jovens foram automaticamente
julgados como adultos. E a lei do Estado do Alabama prevê, no caso de crimes da
gravidade dos cometidos por estes jovens, a obrigatoriedade de os tribunais
proferirem uma sentença de prisão perpétua sem possibilidade de liberdade
condicional.
Ambos os jovens, através dos seus advogados, defenderam a nível dos
tribunais estaduais, sem sucesso, que as suas condenações constituíam uma
violação da 8.ª Emenda à Constituição dos EUA que determina que “não serão
exigidas cauções demasiado elevadas, nem aplicadas multas excessivas, nem
infligidas penas cruéis e pouco comuns” (cruel and unusual punishments). E
ambos recorreram para o ST.
A questão de direito a resolver era a de saber se eram inconstitucionais as
leis estaduais que, face à prática de certos crimes, determinam
obrigatoriamente a condenação dos jovens a uma pena de prisão perpétua sem
possibilidade de liberdade condicional.
O Supremo Tribunal considerou, numa renhida decisão com uma votação 5-4,
que eram, de facto, inconstitucionais as leis estaduais que impunham
obrigatoriamente tais condenações, isto é, sem qualquer possibilidade de os
tribunais poderem atender às circunstâncias concretas dos jovens que estavam a
ser julgados. O ST admitiu que poderia ser essa a decisão final tomada por um
tribunal, mas a lei não a podia impor de forma obrigatória. Caberia aos
tribunais apreciar e decidir em concreto.
Votaram no sentido da decisão os juízes Elena Kagan, Anthony M. Kennedy,
Ruth Bader Ginsburg, Stephen G. Breyer e Sonia Sotomayor. Os juízes Roberts,
Scalia, Thomas e Alito votaram contra por entenderem que as referidas
condenações obrigatórias existiam em 29 estados norte-americanos, estando mais
de 2 000 jovens a cumprir sentenças de prisão perpétua em virtude dessas leis.
E, por isso mesmo, consideraram que as condenações não eram unusual, antes
havendo um padrão social e político de generalizada aprovação dessas punições.
A tese vencedora apoiou-se nos precedentes judiciais relativamente à
necessidade de diferenciar a responsabilidade penal dos jovens dada a sua
“falta de maturidade” e o seu “subdesenvolvido sentido de responsabilidades”
que os levam a ser imprudentes, impulsivos e a assumirem riscos impensadamente.
Para além de que, como lembrou o ST, são mais vulneráveis a influências
negativas e a pressões externas, têm um controlo limitado sobre o seu próprio
ambiente e uma falta de capacidade para se afastarem de situações perigosas em
que estejam envolvidos.
Para o ST, a 8.ª Emenda garante aos cidadãos o direito a não serem objecto
de sanções excessivas e esse direito assenta num princípio básico da justiça de
que a punição pelos crimes deve ser graduada, proporcionada e individualizada.
Ora as leis que impõem obrigatoriamente a pena da prisão perpétua sem
possibilidade de liberdade condicional aos jovens impedem que os tribunais
possam apreciar se existem circunstâncias que justifiquem, em concreto, outro
tipo de condenação destes jovens, que cometeram crimes horríveis, como, por
exemplo, condená-los a prisão perpétua mas com possibilidade de liberdade
condicional. Ou a quaisquer outras penas.
Esta decisão do Supremo Tribunal norte-americano, em que o juiz Kennedy
abandonou a ala conservadora e se juntou à ala liberal, é, assim, uma
assinalável vitória dos direitos humanos numa sociedade extremamente violenta
como é a dos EUA onde a justiça penal e o sistema penitenciário fazem parte de
uma estranha indústria que detém o recorde da maior população prisional do
mundo.
Por Francisco Teixeira da Mota
Público de 29-06-2012