terça-feira, 25 de abril de 2006

Casa da Suplicação XLXI

Homicídio - Ocultação e profanação de cadáver - Autópsia (impossibilidade de …) - Prova do crime - Júri - Recurso do Tribunal de júri (amplitude) - Documentação da prova na acta de audiência - Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP - Fundamentação - Princípio da livre convicção - Recconstituição - Conversas informais - Provas indirectas - Depoimento de ouvir dizer -Depoimento de órgãos de polícia criminal - Princípio in dubio pro reo - Especial censurabilidade e perversidade - Dolo eventual - Medida da pena

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1 - A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente os vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no caso de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem, sendo certo que os riscos de impunidade são acrescidos, quer por força de uma alta criminalidade de teor sofisticado, quer por força do engenho ou sorte ocasional do criminoso comum, que consiga desfazer-se da principal prova directa do seu crime.
2 - O risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver ou de algum vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
3 - Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes de homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de violação só porque não foi possível o exame directo à vítima.
4 - Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e a de presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento típico a morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte (v.g., o crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo, mas, na impossibilidade de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha, devem ser admitidos outros meios de prova que indiquem “a certeza moral sobre a ocorrência do evento” (Nelson Hungria).
5 - O tribunal de júri tem uma legitimidade acrescida, pois a sua constitucionalização para o julgamento dos crimes mais graves, embora a sua participação não seja obrigatória (art. 207.º da lei fundamental), se inscreve nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático no que toca à democratização da organização judiciária (JORGE MIRANDA Constituição e Democracia – Livraria Petrony, 1976, p. 308 e ss.).
6 - Não quer isto dizer, todavia, que a simples participação de jurados exclua ou atenue o controle que deve ser exercido pela instância de recurso sobre o processo de formação da convicção do tribunal «a quo», mas, neste caso, a convicção, para além de estar escudada numa fundamentação exaustiva, tem a suplementar garantia de nesse processo ter intervindo um tribunal de júri, assegurando-lhe uma maior democraticidade, o que quer dizer, uma base mais ampla e diversificada, de composição plural e heterogénea, como expressão concentrada da própria fonte de onde emana a soberania e, portanto, uma maior fiabilidade.
7 - Ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se pode recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-se directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de se invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, “desde que o vício (no caso do n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
8 - Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte.
9 - A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas; servirá ainda para se aquilatar se foi ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não nega ao arguido o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P., nem determina a repetição do julgamento, pois o recurso da matéria de facto não passa, no caso de julgamento com Júri, pela reapreciação da prova documentada na acta.
10 - A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena .
11 - O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.
12 - O erro notório na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova; existe erro notório na apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto» (Acórdão de 30/1/2002, Proc. n.º 30/1/2002, da 3ª Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual 2002, p. 16/17), sendo que essa prova, não pode ser outra que não a que serviu de base à fundamentação da convicção do tribunal, visto o erro ter de decorrer do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos extrínsecos.
13 - Em qualquer caso, o erro tem de ser perceptível pelo homem médio, que é uma outra forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como tem postulado a quase esmagadora maioria da jurisprudência deste Supremo.
14 - Para além de a fundamentação constituir a pedra-de-toque de qualquer decisão e uma das vertentes fundamentais do «compromisso» democrático do órgão de soberania «tribunais» com o povo e uma decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigos 2.º, 3.º, 202.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1, todos da Constituição), a fundamentação deve ser mais exigente e tão minuciosa quanto possível no caso de crime de homicídio em que não apareceu o corpo da vítima e não foi possível realizar o exame ao respectivo cadáver para determinação exacta da causa da morte, tendo, além disso, os arguidos optado pelo direito ao silêncio e não havendo testemunhas directas dos factos.
14 - A decisão cumpre as exigências de fundamentação se suporta com plausibilidade, segundo o processo que foi objectivado no raciocínio lógico que guiou a interpretação de todas as provas conjugadas entre si e com as regras da experiência, a opção que foi tomada em matéria de facto, surgindo essa solução como consequência lógica e adequada à realidade das coisas, tendo em vista as provas de que se serviu o tribunal e as ilações que segundo tal realidade – a da experiência vivida - elas permitiam.
15 - A reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio, sem que tal configure violação do art. 357.º do CPP.
16 - A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de «declarações», pois o discurso ou «declarações» produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto.
17 - As chamadas «conversas informais» são declarações prestadas pelo arguido a órgãos de polícia criminal à margem do processo, sem redução a auto e, portanto, sem respeitarem o princípio da legalidade processual decorrente dos artigos 2.º, 57.º e segs., 262.º e segs., 275.º, 355.º a 357.º do CPP e art. 29.º da Constituição (nulla pena sine judicio), não podendo as declarações assim produzidas serem valoradas como meio de prova e concorrerem para a formação da convicção do tribunal.
18 - As informações prestadas pelo arguido no acto de reconstituição não são declarações feitas à margem do processo a órgão de polícia criminal; são a verbalização do acto de reconstituição validamente efectuado no processo, de acordo com as normas atinentes a este meio de prova e particularmente com o prescrito no art. 150.º do CPP, e mesmo que prestadas, neste e naquele passo, a solicitação de órgão de polícia criminal ou do Ministério Público, destinam-se no geral a esclarecer o próprio acto de reconstituição, com ele se confundindo.
19 - Se o arguido que faz a reconstituição envolve outro arguido, a prova que dai resulta contra este último será havida como corroborada, numa exigência acrescida de prova, se ela for confirmada por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, que, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência, mostrem a veracidade da reconstituição relativamente a esse arguido, que no julgamento optou pelo direito ao silêncio, bem como o que procedeu à reconstituição.
20 - Tendo todas estas provas e nomeadamente a reconstituição sido produzidas e examinadas na audiência e como tal sujeitas ao princípio do contraditório, não podendo a recorrente invocar a opção pelo silêncio de ambos os arguidos para arguir, por exemplo, a violação do princípio da cross examination em relação às «declarações» que incorporam o próprio acto de reconstituição, pois uma tal pretensão está para além do círculo de interesses que constituem a protecção essencial daquele direito, integrado no direito à defesa.
21 - As provas indirectas são as que permitem a apreensão dos factos probandos a partir de deduções e induções objectiváveis a partir de factos indiciários, segundo as regras gerais da experiência.
22 - Se a impossibilidade de ouvir a fonte citada pelas testemunhas de ouvir dizer resultar do direito ao silêncio a que se remeteram os arguidos, que assim nada declararam sobre os factos versados nos depoimentos, estando presentes na audiência, essa impossibilidade não é substancialmente diferente da situação prevista na lei de impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada; e se a isso acrescer que a prova dos factos não resultou em exclusivo dos referidos depoimentos indirectos, pois foi mais um elemento (não decisivo) no conjunto das provas produzidas, e que o tribunal agiu com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da lógica e da experiência, será de concluir que a valoração dos depoimentos nesses termos relativos não ofendeu o disposto no art. 129.º do CPP, em correlação com os direitos dos arguidos, nomeadamente o direito de defesa consignado no art. 32.º , n.ºs 1 e 5 da Constituição.
23 - A lei só exclui o testemunho das entidades policiais que verse o conteúdo de declarações por elas tomadas, sendo completamente descabido que as referidas entidades não pudessem depor sobre todos aqueles factos em relação aos quais o seu posicionamento não foi outro senão o de observadoras ou de intervenientes e observadoras, que, por terem neles participado, tiveram desses factos um conhecimento privilegiado.
24 - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova com expressão constitucional ao nível dos direitos fundamentais, pode ser sindicado pelo STJ.
25 - Todavia, essa sindicação tem de exercer-se dentro dos limites de cognição desse Tribunal, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP. Ou seja: quando, através de análise pertinente, se mostre que o tribunal recorrido valorou contra o arguido uma determinada prova, apesar da subsistência de uma dúvida razoável, ou porque o tribunal manifestamente desfavoreceu o arguido nessa situação, ou porque por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como provado contra o arguido um determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova, extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorizada a seu favor, ou ainda quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
26 - Ocorre uma especial censurabilidade se a arguida era ascendente da vítima, tendo o especial dever de não cometer o crime e até de evitar o resultado por meio de acção adequada, por força de um especial dever de garante (Cf. TAIPA DE CARVALHO, Comentário …, p. 846 e ss.) e em segundo lugar, se ambos os arguidos praticaram o crime contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, a isso acrescendo, e no que diz respeito a um dos arguidos, o facto de ser tio da menor, o que, por um lado, lhe conferia um dever especial, embora não equiparável ao da mãe, de zelar pela saúde e bem-estar da sobrinha, e ainda o facto de terem ambos agido contra a menor, praticando actos de considerável violência sobre ela.
27 - Esse cicunstancialismo, aliado às circunstâncias previstas nos exemplos-padrão (alíneas a) e b) do n.º 2, no caso da arguida L, e alínea b), no caso do arguido J, revelam uma especial censurabilidade, uma culpa acrescida que qualificam o crime de homicídio, mas só pelas referidas alíneas, que não também pela alínea d), pois, não se sabendo qual o motivo que levou à prática do crime, não pode esse motivo ignorado ser qualificado de fútil ou torpe.
28 - O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual
29 - Tendo o crime sido cometido com dolo eventual, segundo a factualidade provada, ou seja, a forma mais enfraquecida de dolo, esse facto não pode deixar de ter repercussões consideráveis em sede de determinação da pena.
30 - Sendo embora altamente censurável a forma como os arguidos agiram, estando esse acréscimo de censurabilidade já reflectido na opção pelo tipo qualificado e tendo as circunstâncias desvaliosas em que os arguidos actuaram, quer as referidas ao desvalor da conduta, quer as referidas ao desvalor da atitude do agente, sido determinantes para a qualificação dos factos, não podem as mesmas ser novamente valoradas em sede de determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.º do CP, sob pena de infracção do princípio da proibição de dupla valoração.
31 - Tendo os arguidos retalhado o corpo da vítima, que meteram em gavetas de uma arca frigorífica e tendo feito desaparecer esses restos mortais, sem deixarem rasto deles, e iludindo sucessivamente as entidades policiais sobre a sua localização, justifica-se que a pena concreta se fixe no máximo previsto no art. 254.º do CP, pois além da ocultação, houve também profanação de cadáver e em circunstâncias particularmente censuráveis.
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Acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006, Proc. n.º 363-06 – 5.ª Secção, Relator: Artur Rodrigues da Costa
Adjuntos: Santos Carvalho, Costa Mortágua (vencidos); Arménio Sottomayor
Presidente da Secção: Alfredo Gonçalves Pereira

Confiança

Nos velhos tempos, o juiz tomava assento sob um dossel de bandeiras de guerra - e a sua missão inspirava medo, ao contrário, o juiz deve sentar-se sob o dossel da paz e a sua maior missão consistirá em inspirar confiança.
Luis de Oliveira Guimarães (Séc. XX)