Não pode deixar de surpreender o frenesim que se apoderou de numerosas figuras públicas que, no rescaldo do escândalo que envolveu o espião Jorge Silva Carvalho, ex-diretor do SIED – Serviço de Informações Estratégicas de Defesa – agora pretendem que, designadamente, juízes e procuradores incluam no seu “registo de interesses” a “participação em organizações mais públicas ou menos públicas ou até secretas”, nas palavras do prof. António Pedro Barbas Homem, ilustre professor de direito e atual diretor do Centro de Estudos Judiciários, conforme edição do jornal Público do passado domingo.
Seria uma exigência, afirmou-se no Congresso do Ministério Público, de transparência democrática, justificada pela natureza de “serviço público” das funções que desempenham. É absurda esta discussão – depois de abolida a “santa inquisição” e extinta a polícia política – sobre “associações secretas” que, além de eventualmente criminosas, sempre seriam ilegais.
O que está em causa é a proteção da privacidade que ficaria exposta a uma devassa ilimitada com a consagração de um dever de “registo de interesses” de âmbito indeterminável. Descontando as incompatibilidades legais bem conhecidas de todos, as incontáveis sugestões de afinidade ou de antipatia que perpassam entre quem julga, quem acusa e quem é acusado, no decurso de um qualquer processo judicial são, na sua generalidade, imprevisíveis.
Um catálogo que pretendesse enumerar todos os impulsos de simpatia, cumplicidade ou aversão que assaltam os atores judiciais no decurso de um julgamento, resultaria em algo parecido com aquela biblioteca incomensurável do conto de Jorge Luís Borges. Aliás, se os preconceitos não existissem, a imparcialidade nunca se teria tomado um valor relevante nem a independência dos magistrados careceria de garantia constitucional.
Num passado relativamente recente, a fronteira entre o “público” e o “privado” ainda definia uma separação nítida e segura entre dois universos contrapostos e aparentemente incomunicáveis. Contudo, esta distinção persiste como traço essencial das democracias constitucionais contemporâneas, trabalhada pelas transformações profundas provocadas pelo desenvolvimento tecnológico e por mudanças substanciais no funcionamento das instituições e nas estruturas sociais.
Uma inclinação estética, filosófica, religiosa ou política, uma paixão clubística, um hábito, uma prática associativa ou tradição familiar, eram assuntos “particulares” e faziam parte da chamada “reserva da intimidade da vida privada” que “ainda hoje” é objeto da proteção expressa do n.°l do artigo 26.°”da Constituição que a qualifica como direito fundamental e lhe dedica vários outros preceitos.
Designadamente, é também interdita a “obtenção e a utilização abusivas (…) de informações relativas às pessoas e famílias” (n.°”2 do mesmo artigo) e é garantida a “inviolabilidade do domicílio”, “do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada” (artigo 34.º).
Os riscos inerentes à utilização da informática são objeto de especiais cautelas com vista à proteção dos “dados pessoais”. Explicitamente, a Constituição proíbe o tratamento informático de quaisquer “dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica” a não ser com o consentimento do próprio ou para fins meramente estatísticos (n.°”3 do artigo 35.º”), proibição que se alarga a quaisquer ficheiros, sejam informáticos ou manuais.
E para além da liberdade de consciência, de expressão, de criação, de reunião ou associação, são também os valores da “reserva da intimidade da vida privada” que fundamentam, já no âmbito “público” da participação política, a adoção do sufrágio universal, direto e “secreto”, como princípio constitucionalizado do nosso direito eleitoral, (n.°’l do artigo 113.01).
Em vez de exigências porventura ingénuas mas com incalculáveis efeitos perversos, investigue-se, à exaustão, as lojas maçónicas e quaisquer cumplicidades indiciadas na teia criminosa que envolve ao mais alto nível os serviços secretos da República.
Opinião de PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS, Professor de Direito da Universidade do Minho Jornal de Notícias 2012-03-09