Abertura da instrução * assistente * objecto do processo * princípio do acusatório * indícios suficientes * denegação de justiça * bem jurídico protegido * crime específico * elementos da infracção* dolo * despacho de não pronúncia
I - De harmonia com a própria letra da lei, a instrução é uma fase facultativa, jurisdicional, em que o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (arts. 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art. 287.º, 288.º, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).
II - Acaso divirja da decisão do MP e acolha as razões enunciadas pelo assistente, o juiz de instrução não lhe devolve os autos, mas pronuncia o arguido pela acusação implícita no requerimento por aquele formulado, assim se respeitando, sob o prisma formal e material, o princípio da acusação imposto pela estrutura acusatória definida constitucionalmente na 1.ª parte do n.º 5 do art. 32.º.
III - Segundo as disposições combinadas dos arts. 298.º e 308.º, n.º 1, ambos daquele Código, se, até ao encerramento da instrução, forem apurados indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento, verificando-se os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve ser proferido despacho de pronúncia pelos factos respectivos; na inversa, despacho de não pronúncia.
IV - A propósito da acusação, mas com inteiro cabimento nesta sede em virtude da norma do art. 308.º, n.º 2, adianta o art. 283.º, n.º 2, do CPP que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
V - No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, não se exige a prova, entendida esta como sinónimo da demonstração da existência do crime, bastam indícios da ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
VI - Possibilidade razoável essa que se baseia num juízo de probabilidade, uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha.
VII - Pretende-se com isto acentuar que, no termo da instrução, compete ao juiz aferir, num juízo de indiciação, é certo, mas ainda assim, e desde logo, objectivado e filtrado pela valoração crítica dos dados probatórios até então recolhidos, se se justifica que o arguido seja submetido a julgamento.
VIII - Concluindo em sentido negativo, profere decisão instrutória de não pronúncia; esta, porque não incide sobre o mérito da causa, configura uma decisão estritamente processual ou adjectiva, no sentido que declara não estarem reunidos os pressupostos para prosseguir para a fase seguinte, a do julgamento.
IX - O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente integrado no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, o que aponta para que o bem jurídico tutelado pela norma se situa na equitativa administração da justiça.
X - Pretende-se assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime os judiciais, o que permite assinalar que se pressupõe uma específica qualidade do agente, a de funcionário, ficando caracterizado como um crime específico.
XI - O preenchimento do tipo objectivo convoca uma actuação ou omissão de funcionário contra direito, lesando deveres funcionais ínsitos ao cargo desempenhado; relativamente ao tipo subjectivo, o mesmo satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se a lei dos fins ou motivos do agente.
XII - Não obstante, ao utilizar-se a fórmula “conscientemente e contra direito”, a lei pretendeu excluir da imputação subjectiva a modalidade menos intensa, a do dolo eventual (n.º 3 do art. 14.º do CP), pelo que o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.
XIII - Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra direito, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém.
XIV - Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.º 1 deste dispositivo; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça.
XV - Também não será a adopção de uma orientação jurisprudencial não maioritária, ou a circunstância de a decisão poder vir a ser revogada por Tribunal Superior, que legitimam a conclusão de que a decisão é, para aquele efeito, proferida contra direito.
XVI - Uma resolução é lavrada contra direito quando contradiz o ordenamento jurídico, ou porque comporta uma interpretação interessada das normas vigentes, ou porque se fundamenta numa disposição ilegal ou inconstitucional; em suma, deve traduzir um ataque à legalidade.
XVII - Num Estado de Direito democrático, a divergência no plano jurídico – seja ela quanto ao iter processual ou no tocante ao direito substantivo –, na solução do caso, colhe acolhimento pela via do recurso e não pela via gravosa da imputação deste crime.
XVIII - Quando o que se apura, sem margem para dúvidas, é apenas uma clara diferença de entendimento dos fundamentos da decisão, por parte do recorrente, já que almejava outra decisão, o tribunal não omitiu o dever de julgar, decidiu foi de forma que não era a por aquele pretendida: há uma decisão judicial que expressa uma solução de direito, com indicação das razões pelas quais se assumiu essa posição – discutível, repete-se, por via recursiva –, permitida pelo complexo jurídico-normativo em vigor, não se mostrando, como tal, proferida “contra direito”, com a acepção e o alcance ínsitos ao art. 369.º, n.º 1, do CP.
XIX - Se as hipotéticas conjecturas do recorrente, a leitura e subsequente interpretação que fez desse despacho não encontram arrimo no material probatório objectivo constante dos autos que sustentem a conclusão de que a arguida, na qualidade de magistrada judicial, desrespeitou o encargo que lhe foi confiado – contribuir para a recta administração da justiça – não está preenchida a tipicidade objectiva.
AcSTJ de 08-10-2008, proc. n.º 31/07-3, relator: Cons. Soreto de Barros
I - De harmonia com a própria letra da lei, a instrução é uma fase facultativa, jurisdicional, em que o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (arts. 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art. 287.º, 288.º, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).
II - Acaso divirja da decisão do MP e acolha as razões enunciadas pelo assistente, o juiz de instrução não lhe devolve os autos, mas pronuncia o arguido pela acusação implícita no requerimento por aquele formulado, assim se respeitando, sob o prisma formal e material, o princípio da acusação imposto pela estrutura acusatória definida constitucionalmente na 1.ª parte do n.º 5 do art. 32.º.
III - Segundo as disposições combinadas dos arts. 298.º e 308.º, n.º 1, ambos daquele Código, se, até ao encerramento da instrução, forem apurados indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento, verificando-se os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve ser proferido despacho de pronúncia pelos factos respectivos; na inversa, despacho de não pronúncia.
IV - A propósito da acusação, mas com inteiro cabimento nesta sede em virtude da norma do art. 308.º, n.º 2, adianta o art. 283.º, n.º 2, do CPP que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
V - No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, não se exige a prova, entendida esta como sinónimo da demonstração da existência do crime, bastam indícios da ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
VI - Possibilidade razoável essa que se baseia num juízo de probabilidade, uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha.
VII - Pretende-se com isto acentuar que, no termo da instrução, compete ao juiz aferir, num juízo de indiciação, é certo, mas ainda assim, e desde logo, objectivado e filtrado pela valoração crítica dos dados probatórios até então recolhidos, se se justifica que o arguido seja submetido a julgamento.
VIII - Concluindo em sentido negativo, profere decisão instrutória de não pronúncia; esta, porque não incide sobre o mérito da causa, configura uma decisão estritamente processual ou adjectiva, no sentido que declara não estarem reunidos os pressupostos para prosseguir para a fase seguinte, a do julgamento.
IX - O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente integrado no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, o que aponta para que o bem jurídico tutelado pela norma se situa na equitativa administração da justiça.
X - Pretende-se assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime os judiciais, o que permite assinalar que se pressupõe uma específica qualidade do agente, a de funcionário, ficando caracterizado como um crime específico.
XI - O preenchimento do tipo objectivo convoca uma actuação ou omissão de funcionário contra direito, lesando deveres funcionais ínsitos ao cargo desempenhado; relativamente ao tipo subjectivo, o mesmo satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se a lei dos fins ou motivos do agente.
XII - Não obstante, ao utilizar-se a fórmula “conscientemente e contra direito”, a lei pretendeu excluir da imputação subjectiva a modalidade menos intensa, a do dolo eventual (n.º 3 do art. 14.º do CP), pelo que o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.
XIII - Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra direito, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém.
XIV - Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.º 1 deste dispositivo; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça.
XV - Também não será a adopção de uma orientação jurisprudencial não maioritária, ou a circunstância de a decisão poder vir a ser revogada por Tribunal Superior, que legitimam a conclusão de que a decisão é, para aquele efeito, proferida contra direito.
XVI - Uma resolução é lavrada contra direito quando contradiz o ordenamento jurídico, ou porque comporta uma interpretação interessada das normas vigentes, ou porque se fundamenta numa disposição ilegal ou inconstitucional; em suma, deve traduzir um ataque à legalidade.
XVII - Num Estado de Direito democrático, a divergência no plano jurídico – seja ela quanto ao iter processual ou no tocante ao direito substantivo –, na solução do caso, colhe acolhimento pela via do recurso e não pela via gravosa da imputação deste crime.
XVIII - Quando o que se apura, sem margem para dúvidas, é apenas uma clara diferença de entendimento dos fundamentos da decisão, por parte do recorrente, já que almejava outra decisão, o tribunal não omitiu o dever de julgar, decidiu foi de forma que não era a por aquele pretendida: há uma decisão judicial que expressa uma solução de direito, com indicação das razões pelas quais se assumiu essa posição – discutível, repete-se, por via recursiva –, permitida pelo complexo jurídico-normativo em vigor, não se mostrando, como tal, proferida “contra direito”, com a acepção e o alcance ínsitos ao art. 369.º, n.º 1, do CP.
XIX - Se as hipotéticas conjecturas do recorrente, a leitura e subsequente interpretação que fez desse despacho não encontram arrimo no material probatório objectivo constante dos autos que sustentem a conclusão de que a arguida, na qualidade de magistrada judicial, desrespeitou o encargo que lhe foi confiado – contribuir para a recta administração da justiça – não está preenchida a tipicidade objectiva.
AcSTJ de 08-10-2008, proc. n.º 31/07-3, relator: Cons. Soreto de Barros