MARIANA
OLIVEIRA
Noronha
de Nascimento não concorda com o novo modelo de organização do tribunais,
preferindo antes que fosse desenvolvido o do Governo de Sócrates
Foi com um discurso crítico e repleto de mensagens subtis que o
presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Noronha Nascimento, falou na
sua última sessão solene de abertura do ano judicial, realizada ontem em
Lisboa. O modelo de reorganização dos tribunais proposto pelo Governo de Passos
Coelho, parte do qual já está em discussão no Parlamento, mereceu fortes
críticas do presidente do STJ, que lamentou que o actual executivo tenha
trocado "o certo pelo incerto".
Lembrando que o anterior Governo já tinha avançado com um modelo
para o novo mapa dos tribunais, com o lançamento de três comarcas-piloto,
Noronha Nascimento lamenta que o actual executivo tenha "mudado o
paradigma". E tenha optado por instalar na gestão das comarcas um
"sistema híbrido" que se centra numa liderança tricéfala - juiz
presidente, procurador coordenador e administrador da comarca.
"A lei de 2008 definia uma liderança bastante clara: o
líder da comarca era o juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, a
quem reportava os problemas surgidos", defendeu Noronha Nascimento. E
acrescentou: "Este sistema funcionou bastante bem nas três comarcas
experimentais e o corolário lógico era o seu alargamento ao conjunto do
território."
Lamentando que no modelo agora em discussão o administrador
judiciário tenha competências próprias, o presidente do Supremo argumenta que
tal constitui "uma distorção a um modelo transparente de liderança".
E avisa: "Corremos o risco de a prática nos surpreender com uma gestão
paralela de três pessoas, com competências, porventura, conflituantes em certas
área e com o administrador - ligado ao ministério - a decidir quais os
beneficiários dos parques, espaços e equipamentos que podem funcionar como
pressupostos do exercício de uma função que tem que ser independente."
Antes de Noronha Nascimento já a nova procuradora-geral da
República, Joana Marques Vidal, tinha falado sobre este tema, curiosamente para
sublinhar que o novo modelo de gestão das comarcas deve "consagrar uma
maior e mais clara participação do Ministério Público no modelo de gestão das
futuras comarcas".
Joana Marques Vidal ainda reforçou a importância do
"princípio da autonomia enquanto corolário da independência dos tribunais
e do funcionamento do Estado de direito democrático", recusando a hipótese
de o Ministério Público depender do executivo. "Como igualmente me
mantenho afastada dos que, por qualquer forma, advogam a possibilidade de
limitar a autonomia desta magistratura, atribuindo àquele princípio, falaciosa
e erradamente, a causa do mau funcionamento da Justiça", vincou Joana
Marques Vidal.
A magistrada admitiu "sinais de menor eficiência e
demasiada morosidade" e defendeu que se deve investir na formação
especializada de procuradores e juízes, além de incentivar o trabalho em
equipa. "Há igualmente que repensar a ligação entre os departamentos de
Investigação e Acção Penal [que investigam os casos mais graves de cada
comarca] e o Departamento Central de Investigação e Acção Penal [que investiga
os casos mais complexo do país], numa tentativa de planeamento de trabalho que,
redefinindo competência próprias de cada um dos departamentos e conjugando
sinergias, consiga potenciar as respectivas capacidades no exercício da luta
contra a criminalidade", realçou.
Cavaco pede
equidade
O Presidente da República, Cavaco Silva, insistiu, por seu lado,
na necessidade de não descurar os princípios da justiça e da equidade nos
sacrifícios que são pedidos aos portugueses num tempo que classificou "de
trabalho árduo".
Até porque, justificou, "quanto maior é a dimensão dos
sacrifícios exigidos, maior tem de ser a preocupação de justiça na sua
repartição". O Presidente explicaria, de seguida, que só o respeito pelos
princípios da justiça e da equidade pode garantir a necessária "coesão
nacional", que classificou de "valor supremo".
"Ao contribuir para a garantia da coesão social e da coesão
intergeracional, a Justiça é um factor determinante de estabilidade e de paz
social", frisou o Presidente.
Assinalando que o actual Governo tem feito um "esforço
assinalável" para responder às mudanças na área da Justiça que tinham de
ocorrer devido à conjuntura económico-financeira, Cavaco sublinhou que o
sistema judicial é o garante da autoridade do Estado e que este deve
"assegurar o efectivo exercício de todos os direitos dos cidadãos".
Na sua intervenção, o Presidente falou ainda nas consequências
económicas de uma Justiça lenta. "Na conjuntura actual, mais do que nunca,
a Justiça deve primar pela eficiência e pela celeridade na resolução dos
litígios com incidência económica. Dessa forma, o sistema judicial prestará um
contributo imprescindível para a melhoria do clima de confiança e para o
crescimento da nossa economia", afirmou.
Também a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, falou dos
efeitos da crise na Justiça, no entanto, noutra perspectiva. "Todo o
sector da Justiça tem de ser ponderado à luz de novos critérios de
exigência", referiu. A ministra sublinhou que as reformas da Justiça
"devem estar acima de disputas descontextualizadas e não podem ser usadas
como armas de arremesso político-partidário", nem estar subjugadas a
"interesses sectoriais ou locais".
Como é habitual o discurso do bastonário da Ordem dos Advogados,
António Marinho e Pinto, foi o mais inflamado, tendo o responsável acusado
alguns juízes de tomarem decisões que constituem "um acto de terrorismo de
Estado".
"Quando um juiz de direito emite um mandado de busca em
branco quanto ao seu objecto, ou seja, uma ordem para apreender todos os
documentos e objectos que se encontrem no escritório de um advogado e que
possam constituir prova contra os seus clientes, incluindo os computadores
pessoais e profissionais do advogado, isto é um acto de terrorismo de
Estado", afirmou. E logo depois fez uma advertência aos advogados:
"Retirem dos vossos escritórios quaisquer documentos ou objectos que
possam incriminar os vossos clientes, pois correm o risco de um juiz ir lá
apreendê-los para os entregar à acusação."
O Governo foi o primeiro alvo do bastonário, que acusou o
executivo liderado por Passos Coelho de insensibilidade, de ter uma agenda
ideológica oculta e de levar a uma política que passa pela "aniquilação
dos direitos de quem vive só do seu trabalho" e pela "destruição do
Estado social". "[É ] um ajuste de contas com os valores e conquistas
mais emblemáticas da revolução do 25 de Abril", realçou.
Denunciou ainda a "fraude em que se consubstanciam certas
pretensas formas de justiça". "A justiça faz-se nos tribunais com
juízes e advogados independentes e com procuradores e não em centros de
mediação ou julgados de paz", afirmou Marinho e Pinto.
O bastonário alongou-se ainda a denunciar o "negócio"
das arbitragens em Portugal. "O Estado tem a obrigação de resolver
soberanamente os litígios entre empresas e não remetê-las para essa gigantesca
farsa que são chamados "tribunais arbitrais", que em muitos casos não
passam de meros instrumentos para legitimar verdadeiros actos de
corrupção", sublinhou. E acrescentou: "Finge-se uma divergência ou
outro pretexto qualquer como um atraso no pagamento do inflacionado preço para
que o caso vá parar ao dito tribunal." Qual será a decisão de um tribunal
"em que os juízes foram substituídos por advogados escolhidos e pagos -
principescamente, aliás - pelo corrupto e pelo corruptor?", perguntou. E,
logo em seguida, respondeu: "É óbvio que proferirá a sentença pretendida
por ambos e obrigará o Estado ao cumprimento integral da prestação que o
corrupto e o corruptor haviam acordado entre si". Uma forma encapotada,
disse, de "prejudicar o próprio Estado". com Rita Brandão Guerra