MANUEL
DA COSTA ANDRADE
Público - 14/04/2013 -
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1. Já pouco sobrará para
acrescentar sobre o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) relativo ao
Orçamento de 2013 (OE 2013), comentado e glosado que foi em todos os tons e
decibéis e em todos os registos emocionais. Mesmo assim, senti-me tentado a
passar pelo foro. Tentação difícil de ultrapassar sobretudo pelo aliciante de
saber que iria caminhar de encontro ao vento, de ir contra a corrente e até
contra interesses próprios, contra o conforto de, ao menos este ano, ter mais
um mês de salário. Uma sensação de conforto em que não estarei isolado, não
sendo irremível heresia acreditar que até posso ter a prestigiante companhia
dos conselheiros do TC.
Mas é por esta margem e contra a corrente que vou. Jurista por
vocação e profissão não me identifico com partes significativas do acórdão. Uma
dissidência que passa tanto pelo teor dispositivo e pela fundamentação como
pelas expectativas a que abre a porta, a deixar recear comprometedoras
frustrações colectivas. Além do mais, por se afigurar que o TC não levou muito
longe o cuidado com as exigências da coerência com os (seus) princípios e
critérios, nem com a contenção recomendável para, aqui e ali, não invadir
terrenos que estão para além da sua legitimidade. Não sendo seguro que, no
caminho, não tenha inconstitucionalmente violado o princípio constitucional da
separação de poderes. Claro que o Governo, os órgãos de soberania, em geral, e
a Administração têm que respeitar (e cumprir) intransigentemente o acórdão. Não
assim os cidadãos livres. Menos ainda os juristas, que não têm que se curvar
perante as decisões do TC. De que podem discordar em toda a linha e que podem
levar ao pelourinho intransigente e cortante da crítica. Nesta veste, o jurista
não reconhece o Roma locuta,
causa finita nem conhece a
suposta força do caso julgado: sobra-lhe sempre o recurso... para as páginas
das revistas da especialidade, para os bancos das escolas onde ensina e
discute, para as mesas-redondas de todos os debates, de todas as
concordâncias/discordâncias.
2. A começar, todos
prestaremos tributo irrestrito à crença axiomática na superioridade e na
prevalência da Constituição sobre a lei (ordinária) do Orçamento. Um enunciado
que leva consigo uma redução da complexidade cuja superação é cometida ao
legislador. Mas um enunciado cuja fecundidade heurística não justifica
expectativas elevadas. Não tem por si a linearidade unívoca, a oferecer
directamente soluções legais, impostas com a evidência do brilho das estrelas
ou com a força inultrapassável da última Tule. Bem vistas as coisas, um truismo
irrecusável, mas cujo significado, na perspectiva da solução do problema que
estava sobre a mesa, é pouco mais que nulo. Trata-se, na verdade, de um
enunciado em cuja indeterminação e contingência se reflectem e amplificam a
plasticidade e a insegurança de cada uma das palavras e dos conceitos que o
integram e suportam.
O que é, em definitivo, a Constituição,
projectada sobre a realidade económico-financeira no contexto do Estado de
direito? E a contingência que se deixa adivinhar avoluma-se e multiplica-se, se
no caminho da aproximação aos problemas reais, se perguntar: o que é igualdade
- e reversamente o que é desigualdade intolerável - na Constituição
económico-financeira do Estado de direito? E ainda: o que é igualdade na
Constituição económico-financeira de um Estado de direito, num tempo em que, em
rigor, nem sequer lhe assistem as credenciais de um verdadeiro Estado, tolhido
como está da liberdade de movimentos em matéria económico-financeira, exposto à
devassa e à vigilância panóptica de terceiros a que temos de obedecer para
sobreviver?
Voltando à pergunta originária: o que é/significa, aqui e agora,
a Constituição (económico-financeira), coisa de que todos falamos, não sendo,
todavia, seguro que haja duas pessoas a falar da mesma "coisa"? Para
pôr a descoberto os coeficientes de contingência, variabilidade e
indeterminação, nem será necessário deitar abaixo as bibliotecas e convocar a
autoridade dos nomes maiores da reflexão e da teorização hermenêutica, e da
teoria da linguagem. Porque um facto vale mil teorias, basta um episódio da
experiência: o tratamento da contribuição
extraordinária de solidariedade.
Se houvesse 100 constitucionalistas em Portugal, a esmagadora
maioria, para aí uns 87, poderiam ter-se pronunciado pela inconstitucionalidade
da medida. Sobravam 13, a pronunciar-se em sentido contrário. Só que, por
capricho do destino, estes têm assento no TC e têm a legitimidade para
emprestar a razão da força à sua (leitura da) Constituição. Mas não é certo de
que lado está a força da razão. Dúvida que se manteria na hipótese contrária de
haver 87 constitucionalistas a pronunciar-se pela constitucionalidade, com os
13 constitucionalistas do TC a pronunciarem-se pela inconstitucionalidade e a
impor a "sua" Constituição. Assim, irredutível a pergunta: posta
entre parênteses a razão da força, onde está a força da razão? Onde está, o que
é, "em tempos de cólera", a Constituição económico-financeira?
3. Um apontamento breve sobre
a igualdade, categoria e
princípio em nome do qual o TC decretou a inconstitucionalidade de algumas
medidas do OE/2013, à semelhança do que fizera já para o OE/2012. O TC verteu o
mesmo direito, a "mesma" Constituição sobre duas constelações
irredutivelmente diferenciadas e assimétricas. Ao elaborar o OE/2013, o
legislador introduziu significativas alterações, ditadas precisamente pelo
propósito de responder às exigências e injunções anteriormente sinalizadas e
prescritas pelo TC em nome da igualdade. Só que, revertendo sobre os seus
próprios critérios e a "sua" Constituição, o TC continuou a impor o
mesmo juízo de inconstitucionalidade. Em nome da "mesma" Constituição
e da "mesma" igualdade, o TC julgou da mesma maneira coisas
profundamente desiguais. Bem vistas as coisas, sobra líquido que o legislador
respeitou o TC. Não é seguro que o TC se tenha respeitado a si próprio ou, se
se quiser, que os seus heterónimos se tenham respeitado entre si.
4. Uma evidência: não foi o TC
que criou o défice, que já antes se conhecia e reconhecia. Segunda evidência:
na parte em que decidiu mal, o TC converteu o buraco preexistente na imensa
cratera hoje subsistente. Na linguagem d" O Génesis, na medida em que
decidiu mal, o TC realizou o "segundo dia da criação" do défice.
Nessa mesma medida, muitos dos novos sacrifícios que se adivinham trarão a
indelével assinatura do TC.
5. E o pior não está aqui.
Pior do que os sacrifícios do presente, que conhecemos e apalpamos e cujos
contornos logramos recortar, são os difusos e inomináveis sacrifícios futuros
que o acórdão traz no bojo. Temos em vista o obscuro e
"parquinsoniano" conceito de igualdade que o TC projecta para enquadrar e
regular as relações entre o público e o privado. Um conceito tão incontrolável
como os pronunciamentos da Pitonisa, capaz, também ele, de, ao mesmo tempo,
significar tudo e o seu contrário, de abrir para todas as verdades e todos os
futuros. Podendo mesmo valer como legitimação antecipada do desmantelamento
irreversível da função pública, com o que ela tem de específico e nobre. O
acórdão pode, assim, representar a concretização perfeita do Cavalo de Tróia:
oferece aos funcionários o presente de mais um salário, mas aponta - e legitima
- o caminho que pode retirar aos funcionários o direito a sê-lo. Descontada a
surpreendente complacência com a redução dos salários.
6. Têm-se feito ouvir vozes a denunciar o que designam por uma
"conspiração", que seria protagonizada pelo Governo, pela troika e por outros.
Coisa que não sabemos a quem imputar: se à prodigiosa imaginação dos espíritos
que "criaram" a conspiração; se ao fulgor intelectual dos que a
"descobriram". Uma coisa sobra líquida: os criadores/descobridores da
ideia terão de acrescentar o TC ao número dos suspeitos da conspiração. É um
papel que o TC não terá procurado nem querido, nem merecido. Mas uma máscara
que, objectivamente, ele próprio afivelou.
Professor
da Faculdade de Direito de Coimbra