Ir mais longe na privatização seria controverso
Frente-a-frente
João Correia e Daniel Proença de Carvalho
SISTEMA JUDICIAL
Gastos de Portugal na Justiça superam a média europeia
ESPECIAL FUNÇÕES DO ESTADO
Gastamos acima da média, mas não temos funcionários nem juízes a mais. O que temos a mais é litigância e os processos são demorados. A eficiência da Justiça volta a estar em discussão
FILOMENA LANÇA*
filomenalanca@negocios.pt
Em Portugal, a despesa pública com Justiça medida em percentagem do PIB está acima da média europeia. São cerca de 0,98%, quando nos nossos parceiros da Zona Euro esse valor anda em média nos 0,46%. E a causa não parece estar no número de funcionários e juízes que fica em linha com os seus parceiros do Euro. Os números são do Conselho da Europa, que todos os anos realiza um relatório sobre a eficiência da Justiça, e referem-se a 2010 (pelo que excluem os cortes substanciais nos salários de 2012).
Em contrapartida, temos mais processos entrados por cem mil habitantes e os casos demoram mais tempo em tribunal. As pendências, essas, também são conhecidas e já este ano voltaram a subir, aproximando-se cada vez mais de 1,7 milhões.
A despesa com a Justiça, que no OE para 2013 registará mesmo um ligeiro aumento de 2,5%, volta agora a estar em avaliação, depois de Paula Teixeira da Cruz ter afirmado que está em estudo um corte de 500 milhões partilhado entre a Justiça, a Administração Interna e a Defesa. Mas, como e onde cortar?
José Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), recusa que o País esteja muito longe dos seus principais parceiros europeus. "Numa visão global, Portugal está na média, não entre os muito bons, é verdade, mas também não entre os maus". Além disso, "em algumas áreas, como por exemplo a do crime, está até muito positivo".
Aqui, verificou-se uma redução do tempo de resolução processual, que está actualmente nos nove meses (era de cerca de um ano em 2007). Noutras áreas, como a do cível ou a comercial, a situação é pior, admite o magistrado. As acções de cobrança de dívida continuam a disparar e as de insolvência também têm vindo a crescer e de 2007 para 2011 o aumento foi de 293%, uma realidade directamente relacionada com a situação de crise que o País atravessa.
Isso, afirma Mouraz Lopes, poderá resolver-se, "deslocalizando alguns investimentos", ou seja, "fazendo um investimento rápido nas áreas onde as coisas estão objectivamente mais complicadas".
Reduzir pessoal não é solução
A implementação do novo mapa judiciário, a partir do próximo ano, deverá promover poupanças na estrutura, mas os magistrados avisam que cortar nos recursos humanos é impossível. "Os funcionários judiciais estão à conta, bem como os juizes, e temos carência de magistrados do Ministério Público (MP)", sublinha Rui Cardoso, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, lembrando que a magistratura continua a precisar de mais de 40 substitutos, que exercem as funções de MP sem terem tido a necessária formação do CEJ.
Olhando mais uma vez para as estatísticas do Conselho da Europa verifica-se que tanto no número de juizes como no de funcionários, Portugal está na média dos restantes países e só a ultrapassa no número de magistrados do MP, o que poderá explicar-se com a diferença de regimes entre os vários países. As estatísticas relativas aos sempre polémicos salários dos juízes revela também uma posição abaixo da média. E, embora seja preciso ter em conta as diferenças de nível de vida de país para país, estas estatísticas, por serem de 2010, não reflectem ainda os cortes nos salários dos magistrados em 2011 e em 2013.
Em alternativa aos cortes, a proposta é que se simplifiquem procedimentos, que se dê mais transparência ao sistema, como defende Mouraz Lopes. Ou, também, que se invista em boas aplicações informáticas "que não obriguem a inserir três vezes os mesmos dados em bases diferentes, como agora acontece", acrescenta Rui Cardoso. A reforma do mapa judiciário ou do código de processo Civil, que em breve deverão chegar ao Parlamento poderão ir nesse sentido, mas falta pô-las no terreno. *com ME
Justiça já privatizou o que podia sem ter de alterar a Constituição
Entregar a privados a gestão dos tribunais, do património imobiliário ou das prisões seriam medidas possíveis, mas polémicas. A Justiça é para os tribunais e para o Estado
FILOMENA LANÇA
filomenalanca@negocios.pt
A Constituição da República é taxativa: "A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos". Ora, a Justiça é uma competência exclusiva dos tribunais, órgãos de soberania, parte integrante do Estado. Posto isto, redefinir as funções do Estado em matéria de Justiça sem mexer na CRP pode ser um verdadeiro quebra-cabeças e a maioria dos especialistas inclina-se para a impossibilidade de tal acontecer.
"Na área da Justiça não se entende que reforma do Estado possa existir porque não há grande margem para privatizar para além de sérios problemas de constitucionalidade", resume Nuno Garoupa, professor de direito da Universidade do Illinois. Rui Alarcão, professor jubilado e membro do Conselho Superior do Ministério Público (MP), concorda: "É preciso proceder com todas as cautelas, pois estão em causa funções primordiais do Estado".
Paula Teixeira da Cruz estará já a delinear um conjunto de cortes que implicarão uma revisão das funções do Estado e que acomodarão, a meias com a Defesa e com a Administração Interna, uma poupança da ordem dos 500 mil euros. De que forma? "Só se for a eito", afirma o bastonário da Ordem dos Advogados. Marinho e Pinto tem-se batido contra qualquer forma de privatização da Justiça, nomeadamente contra a arbitragem como meio alternativo de resolução de litígios. Esta, no entanto, é considerada constitucional, explica Paulo Otero, uma vez que é exercida por "tribunais arbitrais". Deve mesmo, acrescenta Rui Alarcão, ser incentivada. "Aí haverá lugar para uma certa contratualização da Justiça, numa linha de orientação que deve ser continuada".
Tribunais geridos por privados?
No entanto, não será com incentivos à arbitragem que se conseguirão poupanças significativas na Justiça Paulo Otero, especialista em direito constitucional, concorda que as limitações são muitas. Talvez seja possível, admite, entregar a privados a gestão dos tribunais. "Não passa por aí o exercício de uma função de autoridade, é uma função acessória e instrumental, preparatória ou executiva das decisões do Juiz".
Outra hipótese passaria por entregar a privados a gestão do vasto património imobiliário que integra as instalações judiciais. Resta saber que poupanças obteria o Governo com medidas destas. "Desde logo a ausência de responsabilidades salariais em relação a todos os funcionários, podendo uma parte das custas judiciais reverter para os gestores privados, como receita", sugere Paulo Otero.
Os magistrados, contudo, nem querem ouvir falar desta possibilidade. "A gestão dos tribunais está intimamente ligada à sua função jurisdicional", afirma Rui Cardoso, do Sindicato dos Magistrados do MP. Mouraz Lopes, da Associação Sindical dos Juízes, concorda e acrescenta que pensar em privatizar a gestão das cadeias - outra hipótese que tem sido avançada - também é uma impossibilidade constitucional. "A execução de penas não deve sair da órbita do Estado", diz. "Admito que se entreguem alguns serviços, como o fornecimento de refeições, mas uma privatização seria um erro, além de que tem perversidade", acrescenta o magistrado.
Um erro e "genericamente um desastre, com um encaixe financeiro mínimo para o Estado e absolutamente fora de moda", afirma Nuno Garoupa "O Reino Unido introduziu cadeias privadas em 1992, mas tem sido um fracasso. Israel privatizou as suas cadeias em 2004, mas o Supremo Tribunal de Israel decidiu que era inconstitucional porque viola a dignidade humana", esclarece o especialista.
Do notariado à arbitragem: os passos da privatização da Justiça em Portugal
Já há várias áreas da Justiça entregues a privados. Sempre com alguma polémica e no limite do que permite a Constituição
Em 2003, quando o então Governo de Durão Barroso decidiu entregar aos privados o exercício do notariado, levantou-se um coro de críticas, muitas das quais ainda hoje se mantêm. Foi o primeiro grande exercício de privatização da Justiça e a controvérsia de então manteve-se sempre que medidas idênticas foram tomadas. No caso dos notários entendeu-se que seria perfeitamente constitucional, por serem os próprios notários detentores de fé pública e de representação do próprio Estado.
A arbitragem foi o passo seguinte. Assume hoje uma importância crescente, já que os litígios envolvendo grandes negócios praticamente vão desaparecendo dos tribunais. Há cerca de um ano foi lançada também a arbitragem em matéria fiscal, que começa igualmente a ultrapassar as desconfianças iniciais dos contribuintes. O tema continua, no entanto, a dividir as hostes. Marinho Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados, é um dos seus grandes detractores. "A justiça arbitral é uma fraude, é tudo feito na clandestinidade, às escondidas. Quem tem dinheiro ganha", afirma. Do lado dos grandes escritórios de advogados, contudo, a arbitragem é defendida e acarinhada. E a própria troika é grande defensora dos meios alternativos de resolução de litígios (ver texto ao lado).
Além da arbitragem, verifica-se uma aposta cada vez maior na mediação de conflitos por antecipação e tentando evitar que os litígios cheguem efectivamente a tribunal. Acontece já muito nas áreas de família ou laboral, por exemplo. "O Estado deve garantir a justiça e não obrigar as pessoas a fazer as pazes, a entender-se com burocratas, porque essa não é a função do Estado", sustenta, mais uma vez, Marinho e Pinto.
Foi também no sentido da privatização a grande reforma da acção executiva há já quase uma década. Os solicitadores passaram a exercer funções de agentes de execução efectuando a cobrança de dívidas reconhecidas previamente pelos tribunais. Neste momento está já outra reforma a caminho, no sentido, aliás, de entregar mais prerrogativas aos agentes de execução, nomeadamente no que toca à penhora de depósitos bancários.
Troika é defensora da resolução de litígios fora dos tribunais
A arbitragem e a mediação são meios de resolução de litígios alternativos aos tribunais que têm vindo a ser cada vez mais utilizados e que a toika fez questão de incentivar. O memorando previa a elaboração de uma nova lei da arbitragem - que, de resto, vinha já a ser preparada - e que se encontra já em vigor. Pretendia aliciar cada vez mais os operadores para estes meios processuais, onde se resolve já, hoje em dia, uma parte significativa dos litígios que envolvem grandes negócios. Porque é mais rápido do que um tribunal comum, onde as acções ainda se arrastam durante longo tempo, e permite à partes a escolha dos árbitros, que podem, assim, ser especialistas nas matérias em cima da mesa.
Outra aposta da troika era a arbitragem tributária, que entrou em vigor em Julho do ano passado e que pretendia retirar dos tribunais tributários uma parte significativa de acções. As vantagens são semelhantes às da arbitragem comercial e não faltaram vozes a avisar que se estava a fazer uma arbitragem para ricos. O modelo está ainda a entrar em velocidade cruzeiro, mas tem havido um número crescente de processos a dar entrada. Longe, ainda assim, do que seria necessário para ter um impacto significativo nas pendências tributárias.
O memorando prevê, por outro lado, a aprovação de uma nova lei dos Julgados de Paz, que permita também que um número mais substancial de pequenos litígios possa ser "desviado" para estes juízos, aliviando os tribunais comuns. Esta reforma continua por fazer e deverá estar concluída antes do final do ano. Mais rápidas foram as alterações em matéria de inventário, que estão em fase final de processo legislativo e permitirão transferir para os notários a realização de inventários de bens em caso de partilhas.
FRENTE-A-FRENTE AS MESMAS PERGUNTAS. DUAS VISÕES
1. De que forma é que o Estado pode reduzir o seu peso na área da Justiça?
2. Até onde deve ir essa redução? A privatização da justiça é o melhor caminho?
3. Os cidadãos sairão a ganhar? As poupanças para o Estado seriam significativas?
4. Portugal vive o momento adequado a uma reforma deste tipo?
JOÃO CORREIA
ADVOGADO E EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DA JUSTIÇA
"A privatização não é sequer o caminho"
1. O Estado deve ser mais pesado do que é. A Justiça é levada pouco a sério em Portugal, daí a sua leveza. Dum lado, é lenta. Doutro lado, os comentadores televisivos são, por regra, incompetentes. O Estado não deve reduzir o seu peso na área da justiça. Bem pelo contrário, deve ser eficaz, deve ser actuante, ser responsável, responsabilizável e responsabilizada.
2. O que se pode e deve reduzir são os formalismo e as irresponsabilidades. Os formalismos geram a prolixidade e as artimanhas puramente dilatórias; as irresponsabilidades provocam os abusos, o autoritarismo, a lentidão injustificada A privatização não é sequer o caminho. Veja-se o que aconteceu com a Acção Executiva e com a Lei de 2009 sobre os Inventários. Confunde-se, por pura ignorância, o conceito de privatização com a necessidade de devolução a oficiais públicos Ceia-se: notários) de funções parajudiciais de suporte à actividade judiciária.
3. Os cidadãos, está demonstrado, perderam e de que maneira, com a privatização cega de competências que estavam a cargo dos tribunais. Os responsáveis foram alertados na altura própria. Mas dada a sua superficialidade, entenderam transferir competências sem nexo, sem estudo e sem estruturas. O resultado está à vista. O Estado não ganha um cêntimo com a "privatização". Só perde.
4. A reforma é, perante a crise, ainda mais necessária do que o era antes da crise. Este é o momento historicamente apropriado para criar grandes comarcas, para a especialização, para um outro modelo de gestão financeira e de recursos humanos, dum lado, e para uma diferente abordagem dos conflitos nos tribunais, por outro lado. Em suma, esta é a última estação do comboio do progresso para uma justiça do século. XXI. De facto, não nos podemos esquecer que temos uma organização territorial com quase 200 anos e um modelo de relações entre o Estado e os cidadãos com quase 80 anos. Quem os quiser defender, que ponha o braço no ar, mas terá que apresentar alternativas para destruir a degradação da justiça que hoje - todos - vivemos. Se o não fizer, então fique quieto e calado.
DANIEL PROENÇA DE CARVALHO
ADVOGADO
"O caminho a seguir é o do reforço da justiça arbitral"
1. Sim, o Estado pode reduzir o seu peso na área da justiça. Quando comparamos os meios humanos e materiais afectos ao sistema da justiça com os de países europeus que nos são próximos, verificamos que não é por falta de meios que a justiça está longe de corresponder aos padrões exigíveis em eficiência e qualidade. O número de magistrados judiciais e do Ministério Público cresceu bastante mais do que o número de processos entrados no sistema; ou seja, diminuiu muito a produtividade do sistema em 1960, a cada juiz correspondiam 1.040 novos processos; em 2011, por cada juiz, 459 novos processos (dados da Pordata). No que toca aos gastos, Portugal é também um dos países onde a despesa per capita com a justiça é mais elevada.
2. Para além das reformas na organização e funcionamento do sistema, de modo a aumentar a sua eficiência e a reganhar a credibilidade que infelizmente foi perdendo, o caminho a seguir é o do reforço da justiça arbitral, designadamente através de centros de arbitragem, sensibilizando as empresas para o recurso sistemático a esse meio de resolução de conflitos, em alternativa aos tribunais do Estado.
3. Os cidadãos e as empresas têm a ganhar com o recurso aos meios alternativos ao sistema de justiça do Estado, aliás a rapidez e a satisfação das partes que recorrem à arbitragem tem vindo a aumentar muito significativamente. Hoje os grandes litígios passam por aí, o desafio é retirar do sistema do Estado todo o contencioso a que os centros de arbitragem dão melhor resposta na justiça cível, comercial, laboral, administrativa e fiscal.
4. Há muito que a reforma da justiça deveria ter sido empreendia mas os poderosos interesses que dominam o sistema têm impedido qualquer tentativa nesse sentido. A emergência em que nos encontramos é propícia à reforma, que deve merecer o consenso pelo menos dos partidos do Governo e do PS.
Frente-a-frente
João Correia e Daniel Proença de Carvalho
SISTEMA JUDICIAL
Gastos de Portugal na Justiça superam a média europeia
ESPECIAL FUNÇÕES DO ESTADO
Gastamos acima da média, mas não temos funcionários nem juízes a mais. O que temos a mais é litigância e os processos são demorados. A eficiência da Justiça volta a estar em discussão
FILOMENA LANÇA*
filomenalanca@negocios.pt
Em Portugal, a despesa pública com Justiça medida em percentagem do PIB está acima da média europeia. São cerca de 0,98%, quando nos nossos parceiros da Zona Euro esse valor anda em média nos 0,46%. E a causa não parece estar no número de funcionários e juízes que fica em linha com os seus parceiros do Euro. Os números são do Conselho da Europa, que todos os anos realiza um relatório sobre a eficiência da Justiça, e referem-se a 2010 (pelo que excluem os cortes substanciais nos salários de 2012).
Em contrapartida, temos mais processos entrados por cem mil habitantes e os casos demoram mais tempo em tribunal. As pendências, essas, também são conhecidas e já este ano voltaram a subir, aproximando-se cada vez mais de 1,7 milhões.
A despesa com a Justiça, que no OE para 2013 registará mesmo um ligeiro aumento de 2,5%, volta agora a estar em avaliação, depois de Paula Teixeira da Cruz ter afirmado que está em estudo um corte de 500 milhões partilhado entre a Justiça, a Administração Interna e a Defesa. Mas, como e onde cortar?
José Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), recusa que o País esteja muito longe dos seus principais parceiros europeus. "Numa visão global, Portugal está na média, não entre os muito bons, é verdade, mas também não entre os maus". Além disso, "em algumas áreas, como por exemplo a do crime, está até muito positivo".
Aqui, verificou-se uma redução do tempo de resolução processual, que está actualmente nos nove meses (era de cerca de um ano em 2007). Noutras áreas, como a do cível ou a comercial, a situação é pior, admite o magistrado. As acções de cobrança de dívida continuam a disparar e as de insolvência também têm vindo a crescer e de 2007 para 2011 o aumento foi de 293%, uma realidade directamente relacionada com a situação de crise que o País atravessa.
Isso, afirma Mouraz Lopes, poderá resolver-se, "deslocalizando alguns investimentos", ou seja, "fazendo um investimento rápido nas áreas onde as coisas estão objectivamente mais complicadas".
Reduzir pessoal não é solução
A implementação do novo mapa judiciário, a partir do próximo ano, deverá promover poupanças na estrutura, mas os magistrados avisam que cortar nos recursos humanos é impossível. "Os funcionários judiciais estão à conta, bem como os juizes, e temos carência de magistrados do Ministério Público (MP)", sublinha Rui Cardoso, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, lembrando que a magistratura continua a precisar de mais de 40 substitutos, que exercem as funções de MP sem terem tido a necessária formação do CEJ.
Olhando mais uma vez para as estatísticas do Conselho da Europa verifica-se que tanto no número de juizes como no de funcionários, Portugal está na média dos restantes países e só a ultrapassa no número de magistrados do MP, o que poderá explicar-se com a diferença de regimes entre os vários países. As estatísticas relativas aos sempre polémicos salários dos juízes revela também uma posição abaixo da média. E, embora seja preciso ter em conta as diferenças de nível de vida de país para país, estas estatísticas, por serem de 2010, não reflectem ainda os cortes nos salários dos magistrados em 2011 e em 2013.
Em alternativa aos cortes, a proposta é que se simplifiquem procedimentos, que se dê mais transparência ao sistema, como defende Mouraz Lopes. Ou, também, que se invista em boas aplicações informáticas "que não obriguem a inserir três vezes os mesmos dados em bases diferentes, como agora acontece", acrescenta Rui Cardoso. A reforma do mapa judiciário ou do código de processo Civil, que em breve deverão chegar ao Parlamento poderão ir nesse sentido, mas falta pô-las no terreno. *com ME
Justiça já privatizou o que podia sem ter de alterar a Constituição
Entregar a privados a gestão dos tribunais, do património imobiliário ou das prisões seriam medidas possíveis, mas polémicas. A Justiça é para os tribunais e para o Estado
FILOMENA LANÇA
filomenalanca@negocios.pt
A Constituição da República é taxativa: "A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos". Ora, a Justiça é uma competência exclusiva dos tribunais, órgãos de soberania, parte integrante do Estado. Posto isto, redefinir as funções do Estado em matéria de Justiça sem mexer na CRP pode ser um verdadeiro quebra-cabeças e a maioria dos especialistas inclina-se para a impossibilidade de tal acontecer.
"Na área da Justiça não se entende que reforma do Estado possa existir porque não há grande margem para privatizar para além de sérios problemas de constitucionalidade", resume Nuno Garoupa, professor de direito da Universidade do Illinois. Rui Alarcão, professor jubilado e membro do Conselho Superior do Ministério Público (MP), concorda: "É preciso proceder com todas as cautelas, pois estão em causa funções primordiais do Estado".
Paula Teixeira da Cruz estará já a delinear um conjunto de cortes que implicarão uma revisão das funções do Estado e que acomodarão, a meias com a Defesa e com a Administração Interna, uma poupança da ordem dos 500 mil euros. De que forma? "Só se for a eito", afirma o bastonário da Ordem dos Advogados. Marinho e Pinto tem-se batido contra qualquer forma de privatização da Justiça, nomeadamente contra a arbitragem como meio alternativo de resolução de litígios. Esta, no entanto, é considerada constitucional, explica Paulo Otero, uma vez que é exercida por "tribunais arbitrais". Deve mesmo, acrescenta Rui Alarcão, ser incentivada. "Aí haverá lugar para uma certa contratualização da Justiça, numa linha de orientação que deve ser continuada".
Tribunais geridos por privados?
No entanto, não será com incentivos à arbitragem que se conseguirão poupanças significativas na Justiça Paulo Otero, especialista em direito constitucional, concorda que as limitações são muitas. Talvez seja possível, admite, entregar a privados a gestão dos tribunais. "Não passa por aí o exercício de uma função de autoridade, é uma função acessória e instrumental, preparatória ou executiva das decisões do Juiz".
Outra hipótese passaria por entregar a privados a gestão do vasto património imobiliário que integra as instalações judiciais. Resta saber que poupanças obteria o Governo com medidas destas. "Desde logo a ausência de responsabilidades salariais em relação a todos os funcionários, podendo uma parte das custas judiciais reverter para os gestores privados, como receita", sugere Paulo Otero.
Os magistrados, contudo, nem querem ouvir falar desta possibilidade. "A gestão dos tribunais está intimamente ligada à sua função jurisdicional", afirma Rui Cardoso, do Sindicato dos Magistrados do MP. Mouraz Lopes, da Associação Sindical dos Juízes, concorda e acrescenta que pensar em privatizar a gestão das cadeias - outra hipótese que tem sido avançada - também é uma impossibilidade constitucional. "A execução de penas não deve sair da órbita do Estado", diz. "Admito que se entreguem alguns serviços, como o fornecimento de refeições, mas uma privatização seria um erro, além de que tem perversidade", acrescenta o magistrado.
Um erro e "genericamente um desastre, com um encaixe financeiro mínimo para o Estado e absolutamente fora de moda", afirma Nuno Garoupa "O Reino Unido introduziu cadeias privadas em 1992, mas tem sido um fracasso. Israel privatizou as suas cadeias em 2004, mas o Supremo Tribunal de Israel decidiu que era inconstitucional porque viola a dignidade humana", esclarece o especialista.
Do notariado à arbitragem: os passos da privatização da Justiça em Portugal
Já há várias áreas da Justiça entregues a privados. Sempre com alguma polémica e no limite do que permite a Constituição
Em 2003, quando o então Governo de Durão Barroso decidiu entregar aos privados o exercício do notariado, levantou-se um coro de críticas, muitas das quais ainda hoje se mantêm. Foi o primeiro grande exercício de privatização da Justiça e a controvérsia de então manteve-se sempre que medidas idênticas foram tomadas. No caso dos notários entendeu-se que seria perfeitamente constitucional, por serem os próprios notários detentores de fé pública e de representação do próprio Estado.
A arbitragem foi o passo seguinte. Assume hoje uma importância crescente, já que os litígios envolvendo grandes negócios praticamente vão desaparecendo dos tribunais. Há cerca de um ano foi lançada também a arbitragem em matéria fiscal, que começa igualmente a ultrapassar as desconfianças iniciais dos contribuintes. O tema continua, no entanto, a dividir as hostes. Marinho Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados, é um dos seus grandes detractores. "A justiça arbitral é uma fraude, é tudo feito na clandestinidade, às escondidas. Quem tem dinheiro ganha", afirma. Do lado dos grandes escritórios de advogados, contudo, a arbitragem é defendida e acarinhada. E a própria troika é grande defensora dos meios alternativos de resolução de litígios (ver texto ao lado).
Além da arbitragem, verifica-se uma aposta cada vez maior na mediação de conflitos por antecipação e tentando evitar que os litígios cheguem efectivamente a tribunal. Acontece já muito nas áreas de família ou laboral, por exemplo. "O Estado deve garantir a justiça e não obrigar as pessoas a fazer as pazes, a entender-se com burocratas, porque essa não é a função do Estado", sustenta, mais uma vez, Marinho e Pinto.
Foi também no sentido da privatização a grande reforma da acção executiva há já quase uma década. Os solicitadores passaram a exercer funções de agentes de execução efectuando a cobrança de dívidas reconhecidas previamente pelos tribunais. Neste momento está já outra reforma a caminho, no sentido, aliás, de entregar mais prerrogativas aos agentes de execução, nomeadamente no que toca à penhora de depósitos bancários.
Troika é defensora da resolução de litígios fora dos tribunais
A arbitragem e a mediação são meios de resolução de litígios alternativos aos tribunais que têm vindo a ser cada vez mais utilizados e que a toika fez questão de incentivar. O memorando previa a elaboração de uma nova lei da arbitragem - que, de resto, vinha já a ser preparada - e que se encontra já em vigor. Pretendia aliciar cada vez mais os operadores para estes meios processuais, onde se resolve já, hoje em dia, uma parte significativa dos litígios que envolvem grandes negócios. Porque é mais rápido do que um tribunal comum, onde as acções ainda se arrastam durante longo tempo, e permite à partes a escolha dos árbitros, que podem, assim, ser especialistas nas matérias em cima da mesa.
Outra aposta da troika era a arbitragem tributária, que entrou em vigor em Julho do ano passado e que pretendia retirar dos tribunais tributários uma parte significativa de acções. As vantagens são semelhantes às da arbitragem comercial e não faltaram vozes a avisar que se estava a fazer uma arbitragem para ricos. O modelo está ainda a entrar em velocidade cruzeiro, mas tem havido um número crescente de processos a dar entrada. Longe, ainda assim, do que seria necessário para ter um impacto significativo nas pendências tributárias.
O memorando prevê, por outro lado, a aprovação de uma nova lei dos Julgados de Paz, que permita também que um número mais substancial de pequenos litígios possa ser "desviado" para estes juízos, aliviando os tribunais comuns. Esta reforma continua por fazer e deverá estar concluída antes do final do ano. Mais rápidas foram as alterações em matéria de inventário, que estão em fase final de processo legislativo e permitirão transferir para os notários a realização de inventários de bens em caso de partilhas.
FRENTE-A-FRENTE AS MESMAS PERGUNTAS. DUAS VISÕES
1. De que forma é que o Estado pode reduzir o seu peso na área da Justiça?
2. Até onde deve ir essa redução? A privatização da justiça é o melhor caminho?
3. Os cidadãos sairão a ganhar? As poupanças para o Estado seriam significativas?
4. Portugal vive o momento adequado a uma reforma deste tipo?
JOÃO CORREIA
ADVOGADO E EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DA JUSTIÇA
"A privatização não é sequer o caminho"
1. O Estado deve ser mais pesado do que é. A Justiça é levada pouco a sério em Portugal, daí a sua leveza. Dum lado, é lenta. Doutro lado, os comentadores televisivos são, por regra, incompetentes. O Estado não deve reduzir o seu peso na área da justiça. Bem pelo contrário, deve ser eficaz, deve ser actuante, ser responsável, responsabilizável e responsabilizada.
2. O que se pode e deve reduzir são os formalismo e as irresponsabilidades. Os formalismos geram a prolixidade e as artimanhas puramente dilatórias; as irresponsabilidades provocam os abusos, o autoritarismo, a lentidão injustificada A privatização não é sequer o caminho. Veja-se o que aconteceu com a Acção Executiva e com a Lei de 2009 sobre os Inventários. Confunde-se, por pura ignorância, o conceito de privatização com a necessidade de devolução a oficiais públicos Ceia-se: notários) de funções parajudiciais de suporte à actividade judiciária.
3. Os cidadãos, está demonstrado, perderam e de que maneira, com a privatização cega de competências que estavam a cargo dos tribunais. Os responsáveis foram alertados na altura própria. Mas dada a sua superficialidade, entenderam transferir competências sem nexo, sem estudo e sem estruturas. O resultado está à vista. O Estado não ganha um cêntimo com a "privatização". Só perde.
4. A reforma é, perante a crise, ainda mais necessária do que o era antes da crise. Este é o momento historicamente apropriado para criar grandes comarcas, para a especialização, para um outro modelo de gestão financeira e de recursos humanos, dum lado, e para uma diferente abordagem dos conflitos nos tribunais, por outro lado. Em suma, esta é a última estação do comboio do progresso para uma justiça do século. XXI. De facto, não nos podemos esquecer que temos uma organização territorial com quase 200 anos e um modelo de relações entre o Estado e os cidadãos com quase 80 anos. Quem os quiser defender, que ponha o braço no ar, mas terá que apresentar alternativas para destruir a degradação da justiça que hoje - todos - vivemos. Se o não fizer, então fique quieto e calado.
DANIEL PROENÇA DE CARVALHO
ADVOGADO
"O caminho a seguir é o do reforço da justiça arbitral"
1. Sim, o Estado pode reduzir o seu peso na área da justiça. Quando comparamos os meios humanos e materiais afectos ao sistema da justiça com os de países europeus que nos são próximos, verificamos que não é por falta de meios que a justiça está longe de corresponder aos padrões exigíveis em eficiência e qualidade. O número de magistrados judiciais e do Ministério Público cresceu bastante mais do que o número de processos entrados no sistema; ou seja, diminuiu muito a produtividade do sistema em 1960, a cada juiz correspondiam 1.040 novos processos; em 2011, por cada juiz, 459 novos processos (dados da Pordata). No que toca aos gastos, Portugal é também um dos países onde a despesa per capita com a justiça é mais elevada.
2. Para além das reformas na organização e funcionamento do sistema, de modo a aumentar a sua eficiência e a reganhar a credibilidade que infelizmente foi perdendo, o caminho a seguir é o do reforço da justiça arbitral, designadamente através de centros de arbitragem, sensibilizando as empresas para o recurso sistemático a esse meio de resolução de conflitos, em alternativa aos tribunais do Estado.
3. Os cidadãos e as empresas têm a ganhar com o recurso aos meios alternativos ao sistema de justiça do Estado, aliás a rapidez e a satisfação das partes que recorrem à arbitragem tem vindo a aumentar muito significativamente. Hoje os grandes litígios passam por aí, o desafio é retirar do sistema do Estado todo o contencioso a que os centros de arbitragem dão melhor resposta na justiça cível, comercial, laboral, administrativa e fiscal.
4. Há muito que a reforma da justiça deveria ter sido empreendia mas os poderosos interesses que dominam o sistema têm impedido qualquer tentativa nesse sentido. A emergência em que nos encontramos é propícia à reforma, que deve merecer o consenso pelo menos dos partidos do Governo e do PS.
Jornal Negócios 9 de Novembro de 2012