Lembro-me, porque estava lá, quando em 1987 se redigiu o que viria a ser o art. 276º do CPP. Foi numa comissão presidida pelo Doutor Figueiredo Dias, incumbida de preparar um código que substituisse o CPP de 1929. Ganhou-se consciência de que estávamos a prever prazos de duração do inquérito e, aliás, também de prisão preventiva, largamente superiores àqueles que resultavam da lei anterior. O código da democracia iria ser, nesta parte, mais autoritário que o código da ditadura nacional. Por isso mesmo houve o cuidado de consagrar claramente, no nº 1 daquele art. 276º e na própria epígrafe do preceito, a expressão "prazos máximos" e "prazos de duração máxima", para que ficasse claro que aqueles eram os limites toleráveis para as averiguações pré-acusatórias.
Houve, porém, uma grave ingenuidade por parte da comissão: o não ter previsto expressamente o que sucederia no caso de aquele comando legal não ser cumprido e de os inquéritos se arrastarem, por isso, para além daqueles prazos. É certo que o código era muito explícito ao dizer que as ilegalidades que não fossem taxadas como nulidades eram, ao menos, irregularidades (art. 118º do CPP) e que as irregularidades determinavam a invalidade dos actos posteriores (art. 123º).
Só que aquilo com que os legisladores de então não contavam é que à sistemática e deliberada violação da lei sucedesse, como sanção, coisíssima nenhuma. Na verdade, a jurisprudência dos nossos tribunais, fingindo não reparar que, por duas vezes, o legislador havia dado indicações expressas de que se tratava de prazos máximos, rapidamente construiu a teoria de que se tratava, afinal, de prazos meramente ordenadores e não cominatórios, ou seja, que os magistrados os podiam desrespeitar sem qualquer consequência. Mesmo quando as coisas atingiram o abuso de surgirem acusações que tinham a fundamentá-las quase 10 anos de inquérito [repito, quase dez anos ], mesmo assim a miopia jurisprudencial não se impressionou.
Denunciei, tantas vezes quanto me foi possível, esta situação de legitimação da ilegalidade pelos que deviam ser os primeiros a cumpri-la. Claro que, para vergonha nossa, o CPP de 1929, talvez por ter na sua génese o espírito liberal do Doutor Beleza dos Santos, continha o melhor antídoto para prevenir abusos quanto ao desrespeito dos seus curtos prazos: é que, esgotado o prazo do corpo de delito ou instrução preparatória [assim se chamava o que hoje conhecemos por inquérito] abria-se automaticamente a instrução contraditória. Dito por outras palavras: o investigador tinha a seu benefício o segredo de justiça e a total ausência de intervenção dos outros sujeitos processuais na fase das aveiriguações que visavam preparar a acusação e enquanto se contivesse dentro do limite do prazo legal; esgotado este, e porque se abria a fase contraditória, podia continuar as suas averiguações mas já tinha perdido aquelas duas vantagens, pois o conhecimento dos autos abria-se aos sujeitos processuais e eles podiam nele ter intervenção.
O legislador do código que aí virá manteve incólume o sistema do código que pretende reformular. Diga-se que hoje há criminalidade muito mais complexa, mas não tentem enganar-nos fingindo que é toda. Diga-se que lutamos com grande falta de meios, mas essa ladaínha, que se arrasta há anos, já convence cada vez menos pessoas. Uma só coisa, neste particular, é uma exigência crucial do Estado de Direito: respeite-se a segurança jurídica, os direitos das pessoas, defina-se um prazo, vários prazos, o que quer que seja, mas estabeleça-se definitivamente que são para cumprir e quando se derem, como se tinham dado, indicações claras de que se trata de prazos máximos, não se consinta, nunca mais, a total falta de respeito que é o fingir que a lei é só para alguns cumprirem.
PS 1 - já sei que para certas pessoas o culpado dos processos não andarem é o excesso de garantismo e a intervenção dos advogados; o argumento aqui não serve, pois se há fase processual em que os advogados nem sabem o que se passa nem podem actuar, éprecisamente a do inquérito;
PS 2 - não me digam que, para colmatar os incumprimentos dos prazos, existe o incidente da aceleração processual, porque basta olhar para o art. 109º do CPP para ver que, em nome dele, o PGR pode ordenar tudo menos medidas concretas com incidência no processo. Trata-se de um incidente esvaziado, o que tem uma explicação histórica: é que na fase judicial do processo a competência para decidir a aceleração cabe ao CSM e se a lei permitisse que, em nome da aceleração, se pudessem tomar providências que significassem ordenar a prática de actos processuais, estaríamos a dar a um órgão administrativo, o CSM, competência para praticar actos de processo penal, o que seria inconstitucional. Ora por causa desta impossibilidade de o CSM intervir directamente no processo, ficou o PGR, por paridade de razão, incapacitado de o poder fazer na mesma conformidade.
Houve, porém, uma grave ingenuidade por parte da comissão: o não ter previsto expressamente o que sucederia no caso de aquele comando legal não ser cumprido e de os inquéritos se arrastarem, por isso, para além daqueles prazos. É certo que o código era muito explícito ao dizer que as ilegalidades que não fossem taxadas como nulidades eram, ao menos, irregularidades (art. 118º do CPP) e que as irregularidades determinavam a invalidade dos actos posteriores (art. 123º).
Só que aquilo com que os legisladores de então não contavam é que à sistemática e deliberada violação da lei sucedesse, como sanção, coisíssima nenhuma. Na verdade, a jurisprudência dos nossos tribunais, fingindo não reparar que, por duas vezes, o legislador havia dado indicações expressas de que se tratava de prazos máximos, rapidamente construiu a teoria de que se tratava, afinal, de prazos meramente ordenadores e não cominatórios, ou seja, que os magistrados os podiam desrespeitar sem qualquer consequência. Mesmo quando as coisas atingiram o abuso de surgirem acusações que tinham a fundamentá-las quase 10 anos de inquérito [repito, quase dez anos ], mesmo assim a miopia jurisprudencial não se impressionou.
Denunciei, tantas vezes quanto me foi possível, esta situação de legitimação da ilegalidade pelos que deviam ser os primeiros a cumpri-la. Claro que, para vergonha nossa, o CPP de 1929, talvez por ter na sua génese o espírito liberal do Doutor Beleza dos Santos, continha o melhor antídoto para prevenir abusos quanto ao desrespeito dos seus curtos prazos: é que, esgotado o prazo do corpo de delito ou instrução preparatória [assim se chamava o que hoje conhecemos por inquérito] abria-se automaticamente a instrução contraditória. Dito por outras palavras: o investigador tinha a seu benefício o segredo de justiça e a total ausência de intervenção dos outros sujeitos processuais na fase das aveiriguações que visavam preparar a acusação e enquanto se contivesse dentro do limite do prazo legal; esgotado este, e porque se abria a fase contraditória, podia continuar as suas averiguações mas já tinha perdido aquelas duas vantagens, pois o conhecimento dos autos abria-se aos sujeitos processuais e eles podiam nele ter intervenção.
O legislador do código que aí virá manteve incólume o sistema do código que pretende reformular. Diga-se que hoje há criminalidade muito mais complexa, mas não tentem enganar-nos fingindo que é toda. Diga-se que lutamos com grande falta de meios, mas essa ladaínha, que se arrasta há anos, já convence cada vez menos pessoas. Uma só coisa, neste particular, é uma exigência crucial do Estado de Direito: respeite-se a segurança jurídica, os direitos das pessoas, defina-se um prazo, vários prazos, o que quer que seja, mas estabeleça-se definitivamente que são para cumprir e quando se derem, como se tinham dado, indicações claras de que se trata de prazos máximos, não se consinta, nunca mais, a total falta de respeito que é o fingir que a lei é só para alguns cumprirem.
PS 1 - já sei que para certas pessoas o culpado dos processos não andarem é o excesso de garantismo e a intervenção dos advogados; o argumento aqui não serve, pois se há fase processual em que os advogados nem sabem o que se passa nem podem actuar, éprecisamente a do inquérito;
PS 2 - não me digam que, para colmatar os incumprimentos dos prazos, existe o incidente da aceleração processual, porque basta olhar para o art. 109º do CPP para ver que, em nome dele, o PGR pode ordenar tudo menos medidas concretas com incidência no processo. Trata-se de um incidente esvaziado, o que tem uma explicação histórica: é que na fase judicial do processo a competência para decidir a aceleração cabe ao CSM e se a lei permitisse que, em nome da aceleração, se pudessem tomar providências que significassem ordenar a prática de actos processuais, estaríamos a dar a um órgão administrativo, o CSM, competência para praticar actos de processo penal, o que seria inconstitucional. Ora por causa desta impossibilidade de o CSM intervir directamente no processo, ficou o PGR, por paridade de razão, incapacitado de o poder fazer na mesma conformidade.