terça-feira, 5 de outubro de 2004

CASA DA SUPLICAÇÃO (I)

Sendo a informação jurídica importante mas volátil, o seu conhecimento atempado, numa modalidade sintética, reveste-se de grande utilidade.
Daí que se pense passar a fornecer aqui, sob forma de sumários, a indicação da jurisprudência mais recente da 5.ª Secção (Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, até que essa utilidade cesse.



Abuso sexual de criança - Acto sexual de relevo - Coito oral
Preenche o conceito típico de «coito oral», da previsão do n.º 2 do artigo 172.º do Código Penal, indo, assim, além do simples «acto sexual de relevo» tipificado no n.º 1 do mesmo dispositivo legal, a introdução, com fins libidinosos, do pénis do arguido na boca de uma criança de nove anos, sendo indiferente para o efeito que tenha ou não sido feito prova de erecção.

Recurso n.º 2488/04-5
Acórdão de 23.09.2004
Relator: Conselheiro Pereira Madeira

Furto qualificado - Restituição dos objectos - Medida da pena - Suspensão da execução da pena
1 - Ao falar em restituição, ou reparação integral do prejuízo, e ao exigir que tais actos tenham lugar até ao início da audiência de julgamento, ligando-os finalmente à atenuação especial da pena, é evidente que a lei só pode ter em vista o acto de iniciativa do agente, que, no caso de restituição, não pode consistir na mera recuperação dos objectos, como consequência de uma apreensão ou de uma entrega forçada, como sucedeu no caso dos autos.
2 - Tendo o arguido confessado os factos e fornecido ao tribunal a explicação sobre o modo de actuação de todos os outros arguidos por forma relevante, dado que, a partir de tal explicação, o tribunal ficou a ter a percepção da forma de execução do crime, e mostrando-se arrependido, o recorrente manifestou possuir uma reserva ética na sua personalidade que lhe permite fazer um juízo crítico sobre o facto praticado, repudiando-o, por não conforme aos valores tutelados pela incriminação.
3 - Desse modo, podemos prever que a sua sensibilidade à pena será mais acentuada e que, em função dela, a necessidade da pena será correspondentemente menor.
4 - Por outro lado, jogando no mesmo sentido, a forma como o recorrente se comportou na audiência de julgamento, quer no referido aspecto de esclarecimento do tribunal, quer no tocante à demonstrada atitude de conformação com os valores ético-jurídicos fundamentais da comunidade – aspectos que não se devem a mera «táctica processual», pois, de outro modo, não teriam sido valorados positivamente -, demonstra que o recorrente tem já condições favoráveis a uma adequada reinserção social. Também esta consideração pesa na dosagem da pena.
5 - Justifica-se, por isso, que a pena que lhe deve corresponder reflicta esses aspectos, em contraste com o comportamento dos seus co-arguidos, que não reconheceram os factos, nem mostraram qualquer outra forma de interiorização da nocividade da sua conduta.
6 - Não se justifica a suspensão da execução da pena, quando não há elementos que permitam fazer um juízo de prognose favorável, como no caso sub judice em que não se sabe muito acerca das personalidades dos arguidos e do seu passado nos países de origem, o que não favorece um juízo positivo acerca do seu futuro comportamento, no nosso país, quanto ao respeito das normas jurídicas de carácter criminal, militando ainda contra dois deles o facto de não terem reconhecido as respectivas responsabilidades.
7 - Acresce que, tendo os arguidos permanecido em prisão desde a data do cometimento do crime até ao presente (quase um ano e meio), as finalidades que se obteriam com a suspensão da execução da pena estão parcialmente prejudicadas, senão praticamente anuladas.
Processo n.º 753/04-5
Acórdão de 23.09.2004
Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa

Burla - Autoria
1 - Nos termos do art. 26.º do CP, «é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo, ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros…» . Daqui resulta que, para se ser considerado autor, é preciso tomar parte directa na execução do facto, quer actuando solitariamente, quer em colaboração com outros. Neste último caso, o comparticipante há-de contribuir com a sua acção, conjugada com a dos outros, para a realização típica do evento qualificado como crime, ainda que não tenha participação em todos os actos que fazem parte daquele processo de realização.
2 - Para que haja comparticipação em termos de co-autoria, pressupõe-se ainda que haja uma decisão conjunta e uma execução também conjunta, ainda que não seja necessário um acordo prévio.
3 - E, não sendo necessária uma participação em todos os actos, o que é certo é que o co-autor tem de ter o inteiro domínio do facto, ao seu nível, isto é, no respeitante ao que lhe cabia executar, em conformidade com o acordado entre todos.
4 - Não corresponde a estes requisitos a atitude da arguida que se limitou a manter as expectativas quanto à entrega de um carro objecto do suposto negócio de compra e venda, mas em que o ofendido já tinha sido induzido em erro por meio de um processo fraudulento que tinha sido exclusivamente levado a cabo pelo companheiro dela e tinha já desembolsado a quantia correspondente ao suposto preço.
5 - Comete, sim, uma burla autónoma a mesma arguida que, no seguimento de tal negócio, induz o ofendido a entregar-lhe uma quantia suplementar para uma suposta legalização do veículo.
Acórdão de 23/09/2004,
Proc. n.º 2505/04
Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa

Habeas corpus - Liberdade condicional - Penas sucessivas - Cumprimento dos 5/6 do somatório das penas
1 - O requerente cumpre duas penas sucessivas de prisão, tendo já atingido os cinco sextos do somatório de ambas as penas, mas não lhe tendo sido concedida a liberdade condicional pelo juiz do Tribunal de Execução das Penas, que considerou não ser aplicável o disposto no art. 61.º, n.º 5 do CP, por o requerente ter estado em ausência ilegítima por duas vezes e, desde a última captura até ao termo da prisão o tempo a cumprir não ser superior a 6 anos.
2 - Tendo sido interposto recurso da decisão do juiz do TEP, este não foi admitido e, posteriormente, a irrecorribilidade voltou a ser reafirmada em decisão de reclamação.
3 - Tal circunstância impele o STJ a ter de fazer essa reapreciação nos moldes próprios e na prossecução da finalidade que está em causa, no âmbito da providência excepcional de habeas corpus.
4 - Ao contrário de um entendimento que tem feito carreira, não é o remanescente das penas que está por cumprir que é determinante para a concessão da liberdade condicional; não é em relação a esse remanescente que se tem de considerar se a pena ou penas são superiores a 6 anos de prisão. O que é determinante é a pena de prisão em que o arguido foi condenado ou as penas sucessivas que ele tem para cumprir excederem 6 anos de prisão.
5 - A concessão da liberdade condicional aos cinco sextos do cumprimento da pena ou da soma das várias penas, nos termos dos arts. 61.º, n.º 5 e 62.º, n.º 3 do CP, não é facultativa.
6 - Uma vez verificados os requisitos formais e de fundo, é poder-dever do tribunal colocar o condenado em liberdade condicional. Esta, para além do consentimento do condenado, depende tão só da verificação dos requisitos formais, ou mais propriamente daquele que se traduz no cumprimento dos cinco sextos da pena ou da soma das penas em que o arguido foi condenado
7 - Tendo a decisão do TEP considerado que a concessão da liberdade condicional aos cinco sextos do cumprimento das penas era facultativa, verifica-se que a prisão do requerente se mantém para além do prazo fixado pela lei (alínea c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP).
8 - Não competindo ao STJ a concessão da liberdade condicional, tem de proceder-se a uma adaptação do disposto no art. 223.º, n.º 4, alínea d) do CPP, determinando-se que o Tribunal de Execução das Penas providencie pela libertação imediata do requerente, que ficará em situação de liberdade condicional, com fixação do respectivo regime, nos termos do art. 63.º do CP.
Proc. n.º 3422/04 – 5
Acórdão de 23/9/04
Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa

Medidas de segurança de internamento - Pluralidade de medidas - Medida única
1 - A aplicação de medidas de segurança com base na inimputabilidade do agente obedece, entre outros, aos princípios da legalidade e da tipicidade – princípios estes perfeitamente clarificados na lei com a reforma introduzida pela Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
2 - Uma vez verificados os pressupostos típicos de que depende a aplicação de uma medida de segurança de internamento, o tribunal terá obrigatoriamente que a aplicar, pois a lei não deixa margem para a discricionaridade do julgador: «Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do art. 20.º, é mandado internar pelo tribunal …» (art. 91.º n.º1 do CP). Tal como aliás sucede com a ocorrência dos pressupostos típicos de que depende a aplicação ao agente de uma pena .
3 - Por outro lado, visando as penas e medidas de segurança a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1 do CP), e sendo embora certo que as medidas de segurança de internamento são primordialmente orientadas para a ressocialização do agente, as exigências de prevenção geral, traduzidas na necessidade comunitária de reafirmação da norma jurídica violada e, em último termo, na eficácia do sistema jurídico-penal, continuam a impor-se como finalidade que justifica a aplicação de uma reacção criminal.
4 - Estando em curso, no momento da apreciação dos factos, o cumprimento de medidas de segurança de internamento aplicadas em outros processos, impõe-se ao tribunal do último julgamento fazer uma apreciação global da conduta do arguido, por referência a todos os factos praticados, quer nesses autos, quer nos processos anteriores, e à sua perigosidade, e aplicar uma única medida de internamento, em que se mantenha o mínimo aplicado anteriormente, a contar do início da medida, por razões de "defesa da ordem jurídica e da paz social" ( art.s 92º, n.º1, 2.ª parte, e 91º, n.º 2 do CP) e fazer corresponder o termo final do internamento ao momento da cessação do estado de perigosidade criminal, mas não para além, salvo prorrogação nos termos do art. 92º, n.º 3, do «limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime mais grave cometido pelo inimputável» (art. 92º, n.º 2).
Processo n.º 1638/04-5
Acórdão de 23.09.2004
Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa

Prazo de interposição de recurso - Transcrição da prova gravada - Prorrogação do prazo para motivar - Pedido do interessado - Constitucionalidade
1 - Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa (art. 400.1.c do CPP) e, bem assim, de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 5 anos (art. 400.1.e do CPP).
2 - A Relação – ao não admitir, com fundamento em extemporaneidade, o recurso do condenado - não pôs termo à respectiva causa e fê-lo mediante acórdão proferido, em recurso, em processo por crime a que é aplicável pena de prisão não superior a 5 anos, e daí que tal decisão não fosse (nem seja) susceptível, em ambos os casos, de recurso para o Supremo.
3 – O prazo de 15 dias para interposição do recurso é peremptório.
4 - A a transcrição – mesmo que oficial, assento 2/2003, de 16JAN03 DR IS-A de 30JAN – não condiciona a motivação do recurso, pois que a transcrição não se destina a «servir» a motivação do recurso em matéria de facto (cujas «especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 412.º» se farão por referência aos «suportes técnicos» de gravação da prova, e não por referência à sua transcrição), mas antes – e tão só - a facilitar à Relação a apreciação da prova documentada, quando impugnada (art. 431.b).
5 – Se o juiz do processo, a requerimento de outro arguido, decidiu que o prazo para apresentação da sua motivação se iniciasse com a notificação da transcrição, essa decisão não aproveita ao outro arguido condenado, atento o n.º 2 do art. 107.º do CPP que se refere ao requerimento do interessado
6 - Não é tarefa do STJ (ante a irrecorribilidade ordinária da decisão da Relação), mas eventualmente do Tribunal Constitucional, julgar da eventual «inconstitucionalidade» («por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 32º, nº 1, da Constituição») dos artigos 411º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal, na interpretação (que a Relação lhes possa ter dado) «segundo a qual tais normas permitiriam a destruição dos efeitos anteriormente produzidos de uma decisão não impugnada (no caso foi-o pelo MP, na sua contra-alegação de recurso) da primeira instância quanto à prorrogação do prazo de recurso» (TC 14JAN04, ac. 44/2004, proc. 636/03-2).
Recurso 3028/04
Ac. de 23.09.2004
Relator: Conselheiro Carmona da Mota

Contributo do Senhor Conselheiro Simas Santos
(que ainda não consegue postar directamente)

AS COMISSÕES DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS - NOTAS (III)

(... cont.)

Como exerce o Ministério Público as atribuições previstos no já referido nº 2 do artº 72º da LPCJP?

A lei determina que as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens comuniquem obrigatoriamente ao Ministério Público:

a) situações em que a iniciativa e a legitimidade para intervir não cabe às comissões, mas sim ao Ministério Público:
- quando considerem adequado o encaminhamento para a adopção (artº 68º.a[1]);
- quando se justifiquem a regulação ou a alteração do regime do exercício do poder paternal, a inibição do poder paternal, a instauração da tutela ou a adopção de qualquer outra providência cível (artº 69º);
- quando não sejam prestados ou sejam retirados os consentimentos necessários à sua intervenção, à aplicação da medida ou à sua revisão, ou haja oposição da criança ou do jovem (68º. b) ou de quem tenha a sua guarda ocasional nos casos de impossibilidade de contacto com os pais ou representantes legais (artº 96º.3.);
b) situações cuja análise pelo MP se impõe, embora mantendo-se, em princípio, a competência da comissão para intervir,
b.1. ou com vista à possível adopção dos procedimentos necessários à remoção dos obstáculos à aplicação ou execução das medidas consideradas adequadas pela comissão:
- quando sejam reiteradamente não cumpridos os acordos estabelecidos - artº 68º.b. parte final;
- quando não se obtenha a disponibilidade dos meios necessários para aplicar ou executar a medida que considere adequada, nomeadamente por oposição de um serviço ou de uma instituição - artº 68º.c;
- e quando não tenha sido proferida decisão decorridos seis meses após o conhecimento da situação da criança ou do jovem em perigo - artº 68º.d.).
b.2. ou porque foi aplicada uma medida que a lei considera só poder ter lugar em situações excepcionais:
- quando se determine ou mantenha a separação da criação ou do jovem dos seus pais, representante legal ou das pessoas que tenham a sua guarda de facto - artº 68º.e).
c) os factos que, tendo determinado a situação de perigo, constituam crime (artº 70º);
d) os procedimentos urgentes adoptados nos casos de perigo actual e eminente para a vida ou integridade física da criança ou do jovem, havendo oposição dos detentores do poder paternal ou de quem tenha a guarda de facto (artº 91º).

Assim como é obrigatoriamente remetido ao Ministério Público o relatório anual de actividades de cada comissão, até ao dia 31 de Janeiro do ano seguinte àquele a que respeita (artº 32º).

O Ministério Público, a quem a lei comete o dever especial de “representar as crianças e jovens em perigo”, pode, na sequência daquelas comunicações, se o entender necessário, tomar a iniciativa de requerer a abertura de um processo judicial de promoção dos direitos e de protecção, de iniciar um inquérito criminal, de instaurar procedimento tutelar cível em representação do menor ou usar quaisquer outros meios judiciais adequados, ou mesmo accionar em simultâneo mais do que um destes meios de actuação judiciária – numa perspectiva de tratamento coordenado e harmonioso dos vários níveis em que deve ser defendido o interesse superior da criança ou do jovem. Pode ainda, nos casos em que tal se mostre possível e adequado, tomar iniciativas não processuais susceptíveis de, por exemplo, removerem os obstáculos à actuação ou à execução das medidas decididas pela CPCJ. Assim como pode decidir reunir com a comissão para debater a matéria de uma comunicação e dar o seu parecer sobre o modo como deve ser orientado o tratamento de qualquer caso concreto. Ou, pura e simplesmente, pode entender que não há nenhuma iniciativa a tomar.
Pode ainda requerer a realização de auditoria e inspecção às CPCJ (artº 33º).
Mas, o acompanhamento pelo Ministério Público da actividade das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens deve ficar-se pela análise e tratamento da matéria das comunicações obrigatórias que lhe são feitas?
Penso que o legislador quis, com as referidas comunicações obrigatórias, acautelar o mínimo exigível de acompanhamento e fiscalização da actividade processual das comissões, mas os poderes-obrigações do MP face ao trabalho das CPCJ não só não se confinam à matéria daquelas comunicações obrigatórias, pois tem o dever legal de requerer a apreciação judicial de qualquer decisão da comissão de protecção “quando entenda que as medidas aplicadas são ilegais ou inadequadas para a promoção dos direitos e protecção da criança ou do jovem em perigo” (artº 76º.1.), como não se devem confinar, de resto, a uma atitude reactiva aos casos que considere anómalos nem ao núcleo de competências e à actividade da comissão restrita.
[1] Todos os artigos sem indicação do diploma respeitam à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
cont./...