terça-feira, 27 de junho de 2006

Canotilho quer Supremo e Constitucional lado a lado

Para Canotilho, os projectos de lei em discussão na Assembleia da República "estão a complicar o protocolo"

Por Susete Francisco, no DN de hoje
O Tribunal Constitucional (TC) e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) devem ser colocados lado a lado no Protocolo de Estado, mas, a ser dada precedência, esta deve caber ao representante do Supremo. A opinião é defendida pelo constitucionalista Gomes Canotilho, numa altura em que a distribuição de lugares no protocolo está a provocar celeuma no TC - nos projectos de lei em discussão na Assembleia da República, os juízes do STJ têm precedência sobre os conselheiros do Palácio Ratton, o que já levou o presidente deste organismo a protestar junto dos grupos parlamentares.

Em declarações ao DN, Gomes Canotilho diz não ver razões para alterar o que tem sido a prática protocolar relativamente aos representantes do TC e do STJ - colocados ex aequo na quarta posição da hierarquia do Estado (logo atrás do primeiro-ministro), mas com a precedência do presidente do Supremo. Uma situação que merece a concordância do catedrático de Direito: "Os juízes sentem-se representados pelo Supremo e não pelo Tribunal Constitucional: é o tribunal mais antigo e o que representa a generalidade dos juízes." Mas Canotilho defende também que o protocolo deve contemplar unicamente um representante das duas instituições e não prever a presença de todos os conselheiros, quer do TC quer do STJ. Assim como "devia tratar dos órgãos de soberania e não estender-se" a outros organismos, defende, acrescentando que os projectos em discussão "estão a complicar o protocolo".

O projecto de lei do PS coloca o presidente do Supremo na quarta posição da hierarquia do Estado, seguido pelo representante máximo do TC. PSD e CDS colocam-nos lado a lado, mas dando precedência ao STJ. O problema passa pela inclusão dos 60 juízes do Supremo, com precedência sobre os conselheiros. Uma situação que, avançou ontem o Público, levou o presidente do TC, Artur Maurício, a manifestar o seu descontentamento em carta enviada aos grupos parlamentares. É mais um protesto quanto às precedências no protocolo, que vem juntar-se ao descontentamento já expresso por autarcas, deputados e até pelo ministro da Defesa, que criticou já o lugar atribuído pelo PS aos representantes das Forças Armadas.

Sobre a inclusão ou não da Igreja na lista de precedências do protocolo, Gomes Canotilho não tem dúvidas: não deve ser contemplada. Mas, nos casos em que as confissões religiosas sejam convidadas para cerimónias oficiais, o constitucionalista defende "que não será razoável dar o mesmo significado" à Igreja Católica e a outras confissões religiosas. Um tema que Canotilho tinha já abordado no âmbito do debate ontem organizado, em Lisboa, pela Ordem dos Advogados, sobre liberdade religiosa e direitos humanos. "O Estado pode ou não discriminar religiões?", questionou, defendendo que a lei da liberdade religiosa - que definiu como "uma excelente lei" - estabelece alguma discriminação ("uns têm direito à Concordata, outros a acordos, outros não têm direito a nada"), mas deixando também a interrogação sobre se esta diferenciação "não tem, apesar de tudo, justificação".

A revolta das Relações

Por Rui Macedo (advogado), no Público de hoje

A justiça cível piorou nos últimos anos: há mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo) e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido

O sindicato dos magistrados do MP promoveu recentemente uma tertúlia no Majestic. A dado passo ocorreu uma consonância. Silva Leal, que preside à Ordem dos Advogados no Porto, revelou que tem ouvido desembargadores pugnar pelo fim dos recursos em matéria de facto, o que, no seu entender, seria um retrocesso violador dos direitos de defesa dos cidadãos. O conselheiro Simas Santos acabaria por subscrever estas preocupações, acentuando que "as Relações estão a ter muita dificuldade para apreciar a matéria de facto. Há uma rebeldia", frisou. O sentido disto será um enigma para muita gente. Pois posso esclarecer, com o conhecimento de causa de quem já viu recursos dessa espécie serem sumariamente abatidos pela "rebeldia".
No século XX, emergiu nos países da common law e na Europa Ocidental um modelo de processo judicial que conta entre as suas regras (a) com o registo de toda a prova, incluindo os depoimentos prestados oralmente em audiência, e (b) com a garantia de recurso para um tribunal superior do julgamento sobre os factos pelo tribunal de 1.ª instância. O processo português, todavia, foi-se mantendo à margem da corrente, não obstante haver quem, na faculdade e na advocacia, deplorasse a insuficiente garantia de justo processo, decorrente da falta de documentação de toda a prova e duma plena dupla jurisdição. Argumentava-se, para não dar ouvidos àquelas vozes, que o julgamento dos factos por um colectivo de juízes já era uma garantia de justiça eficaz.
As coisas mudaram em 1995. Na revisão do processo civil então aprovada, garantiu-se a gravação dos depoimentos e a real possibilidade de impugnar o julgamento em matéria de facto no recurso para a Relação. Em contrapartida, o tribunal colectivo foi praticamente abolido, passando as causas a ser julgadas pelo juiz singular (a quem a literatura italiana, para não haver engano, chama monocrático). A última parte foi um erro tremendo. Nada aconselha um desinvestimento nas condições para um processo justo na 1.ª instância por troca com uma maior garantia do seu controlo pela Relação. O ideal é que uma causa seja bem julgada na 1.ª instância. A colegialidade cultiva e ilumina. A solidão do poder de dirigir o processo e julgar a causa atrofia e vicia. Em resultado disto, a justiça cível piorou na 1.ª instância.
Mas o pior estava para vir. Há quem veja no poder de julgar com inteira liberdade as controvérsias de facto, isento de escrutínio ou sindicância, limitado apenas pela sua consciência, a pedra de toque do poder, da independência e da autoridade do juiz, sintetizada neste sugestivo mote: o juiz é soberano em matéria de facto. Para esta ideia autocrática da justiça e do juiz, com adeptos fortes nos tribunais superiores (e na direcção da associação sindical dos juízes), a reforma de 95, ao admitir que o juízo sobre os factos seja passível de impugnação e controlo, representa uma intolerável desautorização do juiz. A esta rejeição ideológica, somou-se a rejeição pelos desembargadores da especialização da Relação como 2.ª instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1.ª instância. Confesso que o motivo disto me escapa. A Relação vivia numa penumbra entre dois focos. A questão de facto era arrumada na 1.ª instância. Na questão de direito, era preponderante o Supremo. A reforma de 95 dá à Relação a oportunidade de fazer a diferença, em terreno vedado ao Supremo: inspirar um modelo inteligente e competente de julgar as controvérsias de facto. E a Relação só pensa em reverter à condição anterior! Não entendo.
Mas já posso explicar o que é a "rebeldia" das Relações a que aludiu o conselheiro Simas Santos. A abrir, é uma proclamação de objecção de consciência a controlar a decisão do juiz de 1.ª instância, servida por uma linha de pensamento de fabrico próprio, indefensável e ptolomaica, nascida para servir o juiz e o desembargador, não para servir a justiça, adoptada por todas as Relações a uma velocidade inédita na formação duma jurisprudência, e sobranceiramente reiterada a cada acórdão, não obstante os avisos que vão surgindo de que aquilo rasga mais de 100 anos de estudos jurídicos.
A fechar, a "rebeldia" tem vindo a anular um regime legal com uma orientação dita jurisprudencial, criando uma caricatura de jurisprudência para tornar a lei inoperante. Chacina sistematicamente os recursos sobre a matéria de facto que lhe saem ao caminho, restaurando o regime anterior à reforma como aquele que realmente está em vigor. Remetendo aos advogados acórdãos deliberada e ostensivamente punitivos do acto de recorrer sobre a matéria de facto, está a caminho de levar a cabo o genocídio de uma categoria de recursos, e de exonerar as Relações, por acto de vontade própria, de uma função que lhes é cometida por lei, a de "verdadeira 2.ª instância".
Em resultado de tudo isto, a justiça cível piorou nos últimos anos: há hoje mais erros judiciários do que dantes, e sobretudo mais casos de juízos abertamente divorciados da razão e inquinados por parcialidade evidente (o que era muito raro com o colectivo), e que a Relação faz questão de confirmar com muita honra e discurso de louvor e desagravo do juiz recorrido. Engana-se pois o dr. Silva Leal, ao temer um retrocesso. Já é um facto consumado. Os desembargadores que tem ouvido apenas pretendem do Ministério da Justiça a certidão de óbito da espécie de recursos que vêm matando sem descanso. A consagração legal do poder que se atribuem de des-legislar o que não é do seu agrado nas leis de processo. Por mim, nem sei que dizer perante o arrojo triunfante disto. Pergunto-me de onde veio e como se instalou, e a resposta não condena apenas os seus autores. Condena todos os homens de leis, por termos deixado cair um manto de silêncio, tão raramente rompido, sobre tão grave desafio ao direito.