JOSÉ
PACHECO PEREIRA
Público - 27/04/2013 - 00:00
Cavaco Silva destruiu a função presidencial que hoje é mais
útil, a de moderador acima dos partidos
A única pessoa que vi defender o discurso do Presidente da
República do ponto de vista estratégico (para o PSD e CDS, a questão é táctica)
foi Joaquim Aguiar, ele próprio um conselheiro de vários presidentes. Segundo
ele, e espero ter percebido o que nem sempre é fácil, o discurso de Cavaco
Silva foi o único apropriado, o único que exibia compreensão e
"contemporaneidade" (não foi esta a palavra, mas era este o sentido,
o de adequação com os tempos) contrastando com todos os outros, que eram
arcaicos. A ideia é que vivemos num tempo DD, Depois da Dívida, e o discurso do
Presidente era o único que o compreendia, enquanto todos os outros, assim como
as críticas ao discurso presidencial, eram AD, Antes da Dívida, um tempo que
tinha acabado de vez. O Presidente percebia que o tempo AD tinha acabado, e os
outros não, estavam presos num passado que nunca mais voltaria, logo, era ele
que estava certo e não os seus críticos.
Cada um escolhe o Antes de
Cristo ou o Depois de Cristo, ou, se quiser ser politicamente correcto, Common Era (CE)/Before the Common Era (BCE), ou o calendário muçulmano, ou
qualquer outro, mas alguns economistas-políticos têm vindo a insistir neste
AD/DD, mesmo que não lhe dêem este nome, como o corte fundamental do tempo de
hoje. Para eles, há um mundo antes de 2008 e outro depois. Por detrás desta
ruptura da continuidade do tempo, estão uma tese e uma ideologia. Mas, para
eles, o que está a acontecer é tão natural como a gravidade puxar as coisas
para baixo.
Penso que o que entusiasmou
Joaquim Aguiar no discurso de Cavaco Silva foi a afirmação presidencial de que
nada no processo político democrático, nem eleições, nem programas, nem opções
livres, de partidos e pessoas, poderia pôr em causa a
"sustentabilidade", que é outro nome para a prossecução ad infinitum da política da troika, através dos
instrumentos combinados do Pacto Orçamental, da legislação sobre o
enquadramento orçamental, do poder de veto de Bruxelas e do facto de "não
haver ninguém para nos emprestar dinheiro".
É este o mundo DD, e só os
ingénuos, os ignorantes e os antiquados pensam que se pode escapar. Para os
mais exaltados videntes do DD e os seus imitadores nos blogues, a milícia a
preto e branco destas ideias, considera-se que o Estado de Direito, a
Constituição, a democracia, são tudo coisas muito bonitas no papel, mas a
"realidade" no mundo DD considera-as irrelevantes ou subordinadas à
dura Dívida. Ou seja, com eleições ou sem elas, a política é a mesma, sejam
quais forem os partidos e os políticos eleitos. E, apesar de o PS ter votado
todos estes instrumentos de congelamento da política datroika, o
Presidente suspeita, como Joaquim Aguiar, que Seguro não é propriamente o seu
melhor e mais eficaz executor. Podia ser Vitorino ou Amado, seriam mais
fiáveis, mas Seguro há-de ter sempre um pé dentro e outro fora, por isso, em
"tempos de emergência", não serve. Por isso, não "adianta"
fazer eleições que Seguro pode ganhar. É só tempo perdido.
Numa coisa estou de acordo
com Aguiar, esta é uma questão crucial da vida das democracias ocidentais,
tanto mais importante quanto uma parte importante da elite política europeia se
rendeu a este pensamento e aos interesses que nele estão representados. Em
particular, ela é a melhor expressão política de uma realidade que emergiu
exactamente no tempo da ruptura AD/DD, a entrada plena do sector financeiro na
co-governação das democracias. Como é o caso português, o Governo Passos Coelho
co-governa o país com uma parte da banca, a começar pelo BES e a acabar nos
"credores" supostamente representados pela troika. Não é de agora. A
questão das PPP e dosswap mostra
como as decisões político-económicas se tinham de há muito tornado reféns da
banca, mas o grau de co-governação nunca tinha sido tão próximo, intenso e
decisivo. Esta é uma novidade do tempo DD, um dos frutos da crise
"tóxica" de 2008.
Existe, porém, um problema
que os economistas da escola do DD não conseguem ultrapassar: a sua
incapacidade de perceber que estão a falar em economias em democracia, insisto
economias-em-democracia, e, por isso, considerações sobre a dinâmica da
sociedade (e o empobrecimento é hoje o principal mecanismo dinâmico), opiniões
comuns, representação simbólica e real da justiça social, e opções de voto, são
cruciais. Podem entender o que quiserem, mas sem eleitores para suportarem
essas políticas, sem aliados fora do círculo fechado dos "sempre os
mesmos", ou fora das partidocracias clientelares, as convulsões serão a
regra social e eleitoral. É por isso que eles consideram, como todos os bons
burocratas, que é uma maçada terem que aturar políticos e eleições, que só
perturbam a lógica tão científica das decisões burocráticas. A democracia é, de
facto, uma perturbação, um ruído, uma ineficácia gastadora, um ónus para a
"sustentabilidade."
Eu sei que eles pensam que
não há "economias-em-democracia", mas apenas economias, ou, como lhes
chamam, a "realidade", mas não é verdade, nem em ditadura, quanto
mais em democracia. Convencidos do mito cientista de que estão a
"ajustar" o mundo à "realidade", baterão (como estão a
bater) com a cabeça na realidade sem aspas. Claro que depois a culpa é do
"povo", que é mau, é do Sul, demasiado católico e pouco protestante,
que "não quer trabalhar", tem direitos a mais e "vícios
históricos", etc. Estes mitos e lugares-comuns já se conhecem há muito, e
os historiadores conhecem-nos ainda melhor. Deve ser por isso que saber
História é tido como um desperdício para estes economistas.
Apetece dizer-lhes, como
Clinton a Bush, "é a sociedade, estúpido!", ou "é a democracia,
estúpido!", quando se pensa a "sustentabilidade" apenas em
termos de abstracção económica. Era por isso que, desde o início do memorando,
aquilo que hoje se chama "consenso" (na verdade, compromissos e
negociações), assim como uma consideração dos efeitos sociais pensada em termos
de grupos sociais e do seu papel no conjunto da sociedade, eram tão importantes
desde o primeiro dia, tanto como o controlo do défice. Esta ideia de "fases",
primeiro actua-se "de emergência" contra o défice, estragando o que
era bom e o que era mau, depois manifesta-se grande surpresa pelos efeitos e
pela ineficácia da "emergência", e, por fim, desespero para os
remediar, é uma receita para o desastre oriunda em má economia, mau
conhecimento do país e fraca compreensão do que é a democracia. Vai-nos custar
tantos milhares de milhões como as dívidas de Sócrates.
Não admira, por isso, que o
resultado do discurso de Cavaco Silva tenha sido exactamente o contrário do pretendido:
resultou no agravar da crise política, destruindo a função presidencial que,
nos dias de hoje, era mais útil, a de moderador acima dos partidos,
radicalizando a luta partidária e atirando-a para a nudez pura e dura do
confronto. A prazo, com muito esforço, o Presidente talvez possa minimizar os
efeitos do seu discurso, mas nunca mais poderá recuperar o papel que, sem se
perceber muito bem porquê, deitou fora quando era mais necessário.
Na verdade, o Presidente foi
muito para além de um apoio táctico a um Governo de que não gosta
particularmente. Repetiu também um discurso sobre a Europa que é sempre
contraditório - pede-se à Europa que faça aquilo que por cá se diz que não se
deve fazer -, mas isso não é novidade. Porém, o resto do discurso é estratégico,
sobre a política, a democracia, as eleições a "inevitabilidade" da
política datroika, a valorização dos "resultados" económicos
em contraste com a mera enunciação dos efeitos sociais.
É por isso que um discurso
como o do Presidente, em que elenca os efeitos negativos e valoriza os
resultados "positivos", mostra a incapacidade deste discurso
"economês" em perceber que os efeitos negativos não são apenas
"enunciáveis", como uma espécie de danos colaterais que se lamentam,
mas se pensam inevitáveis. Bem pelo contrário, é por causa deles que o
"programa" vai falhar. São esses efeitos que vão tirar o ar à
política que os ignora porque, enquanto se viver em democracia, as políticas
vão a votos. O "programa" vai falhar, o "programa" é
insustentável, porque desprezou e despreza os factores sociais, em detrimento
de abstracções económicas, e pensou o país numa mecânica rudimentar de causa -
efeito que é tão científico como o flogisto.
Chamem Lavoisier como
consultor para a presidência, que faz falta.
Historiador. Escreve ao
sábado