As imagens causaram grande emoção
no nosso país no ano passado. Duas jovens, de 16 e 15 anos, agrediam
violentamente uma colega de 13 anos, caída no chão, enquanto a cena era filmada
por outro jovem.
O juiz do
tribunal de instrução criminal não foi brando na medida de coacção que aplicou
à jovem de 16 anos: prisão preventiva. A medida mais gravosa aplicável no nosso
sistema penal antes do julgamento e do apuramento efectivo de
responsabilidades.
Uma
medida polémica, seja pela sua gravidade, seja pela idade da arguida, seja pelo
crime em causa. Houve quem concordasse e quem discordasse, o que é
absolutamente natural.
A favor
de tal medida, pode-se alegar que, às vezes, um choque violento com a realidade
e o mundo das responsabilidades dos adultos permite a um jovem perceber o seu
erro e não voltar a praticá-lo.
Contra
tal medida, pode-se alegar que a introdução de uma jovem de 16 anos no meio
prisional poderá causar-lhe males irreversíveis.
O
bastonário da Ordem dos Advogados (OA) não esteve com meias-palavras e disse,
forte e feio, o que pensava do assunto, numa entrevista televisiva: "(...)
Eu acho que é manifestamente desproporcionada a prisão preventiva, essa medida
de coacção, relativamente quer à gravidade dos factos quer à intensidade da
culpa. Isto, o crime em si, não devia, não admite na nossa lei, prisão
preventiva (...)". "(...) Obviamente, reflexo de uma justiça, de um
funcionamento justiceiro próprio dos tempos da Inquisição, isto é, (...) o juiz
faz o que lhe apetece, decide, não tem limites na lei, ele torce a lei, adapta
a lei aos seus preconceitos, aos seus medos, aos seus complexos, à sua
idiossincrasia (...). Em Portugal, as prisões são escolas superiores de
criminalidade, as pessoas saem mais criminosas do que entraram, portanto,
atirar com uma miúda de dezasseis anos e com um jovem de dezasseis anos para a
prisão, isto é terrível". "(...) Aliás, qual foi o crime do jovem?
Foi ter filmado? (...)". E, ainda: "(...) Por amor de Deus, isto é
terrorismo de Estado! (...)".
O juiz do
tribunal central de instrução criminal que decretara a medida de coacção não
gostou das palavras do bastonário e queixou-se criminalmente, acusando-o da
prática de um crime de difamação, isto é, de ter sido ofendido na sua honra e
consideração. Um juiz de instrução concordou com o juiz queixoso e decidiu
levar o bastonário a julgamento.
Embora
afirmando que "a liberdade de expressão constitui um direito inalienável e
é um pilar fundamental de um Estado de direito e de uma sociedade
democrática" e que "a crítica das decisões judiciais é um direito
legítimo de qualquer pessoa, mormente de quem exerce a função de bastonário da
Ordem dos Advogados", não resistiu este juiz de instrução a introduzir no
seu raciocínio o princípio, nunca assumido, do "viva o respeitinho",
ao acrescentar que, "contudo, tal liberdade, como qualquer outra, tem de
ser exercida com ponderação, rigor, objectividade e com respeito pelos demais
direitos".
O que não
é verdade. A opinião pode ser expressa de forma imponderada, com falta de
rigor, cheia de subjectividade e com pouco respeitinho. É esta a garantia da
existência de uma efectiva liberdade de expressão numa sociedade democrática.
Por muito que nos custe ou incomode.
Certo é
que o bastonário recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa e, no passado
dia 12 de Dezembro, os juízes desembargadores Margarida Bacelar e Agostinho
Torres foram lapidares ao ordenar o arquivamento do processo. Não porque
concordassem com as palavras do bastonário. Muito pelo contrário,
consideraram-nas mesmo um exercício do "direito a dizer coisas mal
ditas". Para os desembargadores, as palavras do bastonário eram uma
"tomada de posição ideológica ou emocional", parcial, (...) com uma
argumentação algo rudimentar, sem motivação racional e coerente...".
Mas,
ainda assim, entenderam que não estava indiciada a prática de qualquer crime de
difamação: havia um evidente interesse público na discussão da questão e aquilo
que o bastonário dissera mais não era do que uma opinião, atacando a decisão
judicial e o próprio sistema de justiça que permitia que os juízes procedessem
daquela forma; mas, mesmo que se entendesse que se tratava de uma crítica
directamente dirigida à actuação do juiz queixoso, era evidente que ela se
situava na área do seu comportamento estritamente profissional e não atingia o
núcleo da sua dignidade pessoal, pelo que não fazia sentido criminalizar a
actuação do bastonário da OA.
Uma
decisão sábia que reforça o entendimento democrático da liberdade de expressão
nos nossos tribunais, por oposição ao entendimento autoritário do qual a
decisão do juiz de instrução que ordenava o julgamento do bastonário era um
exemplo. Uma boa notícia a marcar o fim do ano de 2012 nos nossos tribunais.
Advogado. Escreve à
sexta-feira ftmota@netcabo.pt