I - O homicídio privilegiado assenta, como acentua Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, pág. 47), numa cláusula de exigibilidade diminuída, concretizada em certos “estados de afecto”, vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa.
II - Constituem esses elementos privilegiadores a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou o motivo de relevante valor social ou moral.
III - A compreensível emoção violenta é um estado de afecto provocado por uma situação pela qual o agente não é responsável. Ela é, de certo modo, a resposta a uma provocação e, nessa medida, ela pode diminuir de forma sensível a culpa do agente. Mas terá de ser compreensível, exigência adicional de pendor objectivo não extensível aos outros elementos privilegiadores.
IV - Quanto ao desespero, ele abrangerá os estados de afecto asténicos, como a angústia e a depressão.
V - Resultando da matéria de facto apurada que: - o arguido agrediu mortalmente a vítima, sua mulher, após uma discussão resultante da recusa desta última em manter com ele relações sexuais; - cerca de uma hora após a agressão (após ter lavado e guardado o punhal com que golpeara a vítima), e depois de constatar a morte da mulher, tentou suicidar-se na Ponte 25 de Abril, sendo impedido disso por agentes policiais; - o arguido suspeitava que a mulher tinha um envolvimento amoroso com outro homem, suspeitas que aumentaram, no dia dos factos, com a recepção de mensagens constantes no telemóvel daquela e após ela lhe ter comunicado que tinha intenção de se divorciar, hipótese que era para ele inaceitável; - o arguido amava a mulher e sente muito a sua falta; tais factos afastam decisivamente a possibilidade de integração no elemento “compreensível emoção violenta”, uma vez que o estado de afecto vivido pelo arguido não resultou de uma “provocação” da vítima, já que assim não pode ser considerada a intenção por ela anunciada de se divorciar, por ser um direito seu.
VI - Os factos descritos poderão considerar-se como integrando o elemento “desespero”, pois que configuram um “crime passional”, em que o agente mata o objecto da sua paixão por não poder conservá-lo só para si, quadro típico completado pela tentativa de subsídio subsequente (que, pela leitura da matéria de facto, deve ser entendida como autêntica, não simulada ou encenada).
VII - Contudo, a verificação do elemento privilegiador não basta para privilegiar o crime. «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue ‘dominado’ por aqueles estados ou motivos” (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, pág. 48).
VIII - A ponderação da diminuição sensível de culpa, da diminuição da exigibilidade de conduta diferente, é indispensável para subsunção dos factos ao art. 133.º do CP: só se o “estado de afecto” que determina o crime for de molde a atenuar sensivelmente a exigibilidade de conformidade com o direito, mitigando notavelmente a culpa, o homicídio pode ser privilegiado.
IX - Tal ponderação terá de ser realizada à luz do que seria exigível a alguém colocado naquelas circunstâncias concretas; doutra forma, poderia dar-se relevância atenuativa a reacções violentas desproporcionadas e extravagantes, ou a condutas completamente reprováveis, com o álibi de serem desencadeadas por “estados de alma” fortemente emotivos.
X - Não se verifica, in casu, uma situação de exigibilidade diminuída, de diminuição sensível da culpa, pois que ao arguido era exigível comportamento diferente. A reacção violenta do arguido, ainda que eventualmente desencadeada por desespero, não pode receber a cobertura do art. 133.º do CP, porque sobre o arguido recaía o dever de respeitar as decisões da mulher, como pessoa dotada de autonomia plena, e consequentemente tinha o dever de autocontrolar as suas emoções.
XI - A valorização do ciúme ou da desconfiança sobre a fidelidade do cônjuge como elemento mitigador da responsabilidade criminal é absolutamente de rejeitar no ordenamento jurídico de um Estado de direito democrático, assente na dignidade da pessoa humana e no direito de todos ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Aliás, nem se provaram quaisquer circunstâncias que tivessem desencadeado, naquela ocasião, uma emoção de súbita violência por parte do arguido, pois nem a intenção do divórcio nem a recusa de relações sexuais eram factos novos (o casal já dormia em quartos separados), nem se provou qual o conteúdo das mensagens recebidas pela vítima no telemóvel.
XII - Sendo elevado o grau de ilicitude, quer pelo resultado, quer pelo modo de execução do crime, e grande a exigência de prevenção geral, conhecida como é a extensão do fenómeno do homicídio conjugal no nosso país, a circunstância de o arguido se mostrar profundamente arrependido não se apresenta como particularmente relevante, não existindo fundamento para a atenuação especial da pena.
AcSTJ de 03-10-2007, Proc. n.º 2791/07-3, Relator: Cons. Maia Costa