terça-feira, 25 de setembro de 2012

Julgar em situação de soberania limitada

Por António Cluny, publicado em 25 Set 2012
António ClunyO problema do exercício do poder em situações de soberania limitada é saber que parte é legítima e que parte não passa de usar a imposição externa para aplicar a ideologia
1. Durante as férias, ao arrumar papéis e livros, deparei-me com documentos e estudos que ajudam a reflectir o momento judicial actual.
Descobri o programa e as intervenções de uma conferência da MEDEL (Magistrados Europeus pela Democracia e as Liberdades, associação de magistrados de 15 países) subordinada ao tema «Julgar em tempo de crise».
Encontrei um livro, “Juger Sous Vichy”, contendo as actas de um seminário organizado pela École Nationale de la Magistrature. Revi ainda um pequeno e, propositadamente, provocatório texto de Antonio Gramsci, intitulado “Doveri di un Judice (Elogio de Ponzio Pilato)”.
Todos tratam das perplexidades, das motivações e das condutas dos juízes em circunstâncias de crise de soberania; analisam a atitude dos magistrados perante a lei formalmente legal, mas contrária aos direitos fundamentais constitucionais (nacionais ou internacionais) e negociada e aceite à revelia dos interesses dos próprios povos.
A questão adquiriu relevância em França, dada a reavaliação recente do governo de Vichy.
Este foi, como se sabe, formalmente legitimado pela Assembleia Nacional, que investiu no governo o marechal Pétain, outorgando-lhe plenos poderes para negociar com a potência invasora: a Alemanha.
Os responsáveis de tal regime desenvolveram então todo um arsenal de medidas e leis que visaram, alegadamente, salvar a limitada soberania da França e o que restava dos seus interesses, instituições e ordem jurídica.
Em alguns pontos, porém – como, por exemplo, a clarificação jurídica do que é um judeu –, os legisladores de Vichy, por ideologia própria (o anti--semitismo tinha raízes profundas em França) ou por excesso de zelo, acabaram até por produzir uma definição que veio a ser adoptada pelos alemães.
2. O problema do exercício do poder em situações de soberania limitada – aí se incluindo o exercício do poder judicial – é sempre esse: o de saber distinguir o que é legítimo, apesar de resultante de uma determinação da potência dominante; o que, sob a aparência de uma imposição externa, mais não é do que uma despropositada e zelosa subordinação; e o que, pura e simplesmente, consiste numa oportunista manobra ideológica para aplicar ideias próprias que contrariam, em qualquer circunstância, os princípios constitucionais que dão corpo à República.
«Le Magazine Littéraire» (n.º 516, de Fevereiro de 2012) publicou, a propósito destas situações-limite, um interessante caderno.
As histórias pessoais de muitos dos brilhantes intelectuais que acederam e excederam os ditames dos nazis e dos «vichystes», e as razões das suas motivações reais aí analisadas, não podem se não inquietar-nos. As reacções posteriores, também.
À mobilização a favor da clemência, desenvolvida pelos sempre generosos intelectuais franceses para com Robert de Brasillach, que excedera em muito o próprio zelo ideológico do ocupante alemão e fora, por isso, condenado à morte, respondeu, peremptório, De Gaulle: «Ele jogou, perdeu, deve pagar.» Brasillach foi fuzilado em 6 de Fevereiro de 1945.
3. Voltando à missão dos juízes, o equilíbrio parece situar-se, de facto, na capacidade que estes tiverem de, perante a crise de soberania, saberem distinguir o que vale e pesa a legalidade formal das disposições impostas por tais regimes ou seus mandantes, face aos interesses do país, que só podem, afinal, ser aferidos pela legitimidade dos princípios constitucionais que o povo, quando soberano, quis que fossem os seus.
Jurista e presidente da MEDEL

“É preciso é ter vontade de aplicar a lei a todos”


Discurso directo
Rui Cardoso, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, sobre Parcerias Público-Privadas (PPP)
Por: Ana Luísa nascimento
Correio da Manhã – Defende que, independente da renegociação das PPP, há uma solução para minimizar os encargos públicos, resultantes das elevadas taxas de rentabilidade que o Estado se comprometeu a assegurar aos privados. Pode explicar essa solução?
Rui Cardoso – É aprovar uma norma no Orçamento de Estado dizendo que as taxas de rentabilidade que excedam um determinado valor são reduzidas a esse mesmo valor. Ou seja, é dizer que nenhuma PPP pode ter uma taxa de rentabilidade superior a, por exemplo, 3 ou 4 por cento. A partir daí, o Estado só paga isso. Não há nenhum negócio legítimo que dê uma taxa de rentabilidade de 20%, mas foi isso que foi prometido. No estado em que está o País, isso é inadmissível. O Estado tem o poder legislativo para o fazer.
– Na prática, trata-se de usar a lei, da mesma forma que foi usada para tirar subsídios aos trabalhadores...
– Sim, e parece-me que não é inconstitucional. Face à situação de emergência do País, à necessidade de reduzir custos, de repartir equitativamente os sacrifícios – tudo reconhecido pelo Tribunal Constitucional – parece-me que essa norma não violaria a Constituição.
– Por que razão não se punem os responsáveis pelos contratos das parcerias que, como já disse, são ruinosas?
– Sobre isso há uma investigação, pelo menos está anunciada como tal. Agora é deixar a investigação correr.
– Esta situação não obriga a repensar o catálogo de crimes de titulares de cargos políticos, por exemplo, a gestão danosa?
– Com as leis actuais, há tipos de crimes em que esta situação, em abstracto, poderá ser enquadrada. Agora, é preciso é haver vontade de aplicar a todos as leis que existem.