domingo, 10 de março de 2013

Morte de Cleópatra (1869)


Localização: Musée des Augustins. Toulouse
Autor: Jean André Rixens

Nada se perderá

Sentir o Direito
Por: Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal
Foi a filósofa americana Martha Nussbaum que me deu a conhecer, num livro sobre a inteligência das emoções ("Upheavels of Thought"), estas palavras de Gustav Mahler na maravilhosa 2ª Sinfonia: "acredita, meu coração, que nada do que quiseste se perderá". É um hino de esperança perante a morte, mas também um apelo à Justiça, que o Direito deve escutar.
A ideia dominante de Justiça tende a nivelar todas as pessoas, abstraindo das suas capacidades individuais, tanto para as castigar como para as premiar. Porém, na tradição estoica, é justo atribuir a cada um o que lhe pertence. Trata-se, na formulação apresentada há 1800 anos por Ulpiano, de dar a cada um o que lhe é devido: "suum cuique tribuere".
Esta é uma ideia de Justiça que acredita em duas teses fundamentais: por um lado, somos feitos da mesma matéria e possuímos uma natureza comum, podendo apresentar idênticos defeitos e virtudes, o que possibilita o julgamento individual; por outro lado, cada pessoa tem a sua especificidade, com crenças e capacidades cuja realização deve ser assegurada.
As palavras de Mahler parecem contradizer uma afirmação amarga de Manoel de Oliveira, segundo a qual "a vida é uma derrota". Se é verdade que todos transportamos, neste momento de angústia generalizada, os traços de uma derrota, também é certo que há sinais de que os nossos pequenos ou grandes desejos não poderão ser apagados da história individual e coletiva.
A Justiça Penal também deve partir de uma leitura da condição humana em conflito entre as dificuldades sociais e o desejo de atingir objetivos que exprimem o que há de melhor em cada pessoa. Punir alguém deve corresponder à responsabilidade de libertar o criminoso do seu crime e não a uma simples fórmula técnica ou a um ato de conveniência política.
Na perspetiva da Constituição, este entendimento é imposto pela essencial dignidade da pessoa humana, princípio que é reconhecido, logo no artigo 1º, como pressuposto e fundamento da própria República Portuguesa. Essa essencial dignidade obriga-nos a tratar cada ser humano como um fim em si mesmo e não como um meio de alcançar outros objetivos.
Só assim a "amarga necessidade" punitiva de que falava, no século XVIII, o jurista e filósofo Cesare Beccaria – um dos expoentes do iluminismo italiano, que se distinguiu na luta contra a tortura e a pena de morte – se pode transformar numa atividade social útil. O regresso à retribuição penal ou a uma prevenção utilitarista constituiria um profundo retrocesso.

O Presidente da República, o Desporto e a Justiça

JOSÉ MANUEL MEIRIM 
Público - 10/03/2013 - 00:00
1. Sei que o momento que se vive, em termos económicos e sociais, a "crise", ocupará, por certo, muito do tempo e da reflexão da Presidência da República. Tenho consciência de que falar de desporto, referir algo que se entende importante nesta área de vivência social, representa para uma boa parte das nossas elites (?) - incluindo a política - algo de valor diminuído, como se o desporto fosse apenas divertimento, espectáculo e, em alguns casos, somente conversa de café ou instrumento de arremesso às segundas-feiras. Não nos escapa ainda o entendimento de que, para as mesmas elites (?), desporto é, desde logo, o futebol. E, assim sendo, sem mais, é "para levar na desportiva".
2. Na passada sexta-feira, a Assembleia da República aprovou a criação de um Tribunal Arbitral do Desporto. Algumas das minhas leituras são públicas e encontram-se mesmo na página do Parlamento. Ao seu lado - no mesmo local - outras análises existem, por exemplo as dos órgãos de gestão e disciplina das magistraturas. Muitas delas são negativas quanto a um aspecto central: a imposição legal - com exclusão do acesso aos tribunais do Estado - de uma arbitragem.
3. Porventura, inserida num processo de "privatização" dessa função soberana - a aplicação da Justiça - do Estado, a solução encontrada para o desporto pela Assembleia da República, levanta legítimas dúvidas da sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa. A resposta da lei, de uma arbitragem necessária com os contornos que apresenta, irá operar "sobre" milhares de organizações desportivas e muitos milhares de agentes desportivos (praticantes, dirigentes, treinadores e agentes de arbitragem). Em causa estarão, sobretudo, os direitos fundamentais da "sociedade desportiva" a reclamarem um exercício pleno da função jurisdicional.
4. Chegados aqui, independentemente das nossas próprias opiniões, o que nos parece fundamental é que um significativo e impressivo - pela sua origem - conjunto de opiniões advoga a inconstitucionalidade do modelo alcançado no Parlamento. Por outro lado, interessa, a nosso ver, perante este quadro, alcançar - o mais cedo possível - um juízo que dote o modelo de justiça desportiva da necessária segurança jurídica, o qual, bem vistas as coisas, é muito pouco alternativo aos tribunais e muito mais excludente.
5. Não solicitando o Presidente da República a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto da Assembleia da República, que aprova a criação do Tribunal Arbitral do Desporto, o Desporto, mas também a Justiça, arriscam-se a que, mais tarde ou mais cedo, o erigir deste novo edifício se veja afectado nas suas fundações com juízos de inconstitucionalidade, alcançados a posterior pelos tribunais e, depois, pelo Tribunal Constitucional.
6. Seria bem melhor para o Desporto e para a Justiça que tal juízo, positivo ou negativo, fosse obtido ainda antes do Tribunal Arbitral do Desporto começar a gatinhar. Dessa forma, ganharíamos todos: o Desporto, a Justiça e este infeliz país. 
josemeirim@gmail.com