Justiça de Perdição
Maria José Morgado
Quando arranco para o ar fresco da corrida matinal, sinto os músculos a empurrar o chão no recomeço de uma pequena história de luta e prazer. Nada importa além da motivação do esforço físico de alcançar os objetivos do plano da corrida. Estes treinos acabaram por revelar vantagens inesperadas noutras áreas, na busca de solução dos imbróglios profissionais e jurídicos que inundam a vida de um magistrado.
O mundo da justiça penal vive esmagado por reformas de governos sucessivos cuja especialidade é proclamá-las contraditoriamente em anulação recíproca. Os códigos de processo e de direito penal têm sofrido alterações de dois em dois anos ditados por interesses sem rosto ou inconsequentes. Paralelamente, a suposta modernização da legislação penal tem sido feita em legislação avulsa tão confusa quanto abundante com consequências graves para a segurança jurídica das pessoas. A certa altura surgiu a praga das "grandes reformas" estivais publicadas em agosto. Atarantados, recomeçávamos tudo de novo em setembro, sem sentido nenhum palpável, com total desperdício de energias e custos elevados.
No meio de tudo isto não é difícil perceber a desorientação de alguns, a perda do sentido da boa decisão ou mesmo a dificuldade em raciocinar corretamente. A sucessão de leis no tempo em cachão de leis tacanhas não deixa grande espaço para a justiça material. Na verdade as pessoas ficam à mercê da incerteza jurídica e de malabarismos à medida do freguês.
E assim fui substituindo gradual e inconscientemente o tempo do estudo da jurisprudência e dos manuais pelo tempo no jogging. As endorfinas tornaram-se sempre mais inspiradoras do que a interpretação de leis tão falhadas. Quando tenho um problema sério, o que acontece quase todos os dias, concentro-me nele durante a corrida e, no fim, tenho a chave de uma solução prática e eficiente.
Em agosto o plano de treino é menos duro. Arranco junto ao largo do pelourinho, corro em direção à orla costeira, reparo na velocidade com que a paisagem fica para trás como forma de dosear a intensidade do treino. As angústias com o recomeço dos problemas em setembro serão resolvidas no matraquear cadenciado da corrida, o sofrimento e o prazer da dor dos músculos trarão soluções, a irreversibilidade do objetivo final.
Talvez a manutenção desta prática me permita aspirar à melhoria das capacidades cognitivas e de resistência, condições para o bom senso na justiça para as pessoas. Não vale a pena estudar leis que não são leis e podem sempre ser anuladas por outras leis em interpretações imprevisíveis. São produto da reforma permanente, acabaram com a certeza e previsibilidade na aplicação da justiça penal. Substituíram as leis por manuais de instruções, o que compromete a livre capacidade de pensar e de decidir dos magistrados. Vale a pena sim, saber pensar.
Fim do jogging. E da crónica. Escorro suor, pulsações a 140, estou junto ao forte abandonado de Milréus, ruína feita do silêncio do mar numa indescritível paz dormente.
sábado, 17 de agosto de 2013
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