Numa altura em
que o Governo quer mudar as leis penais, peritos alertam para o desconhecimento
por parte do Estado das taxas de reincidência criminal, que medem a eficácia
das medidas
O
Estado português não sabe quantos criminosos voltaram a reincidir, nem porquê,
nem o seu perfil. Apesar de a reincidência ser uma agravante na escolha das
penas, os juízes e os procuradores não têm acesso, em tempo útil, a toda a
informação sobre os antecedentes criminais dos suspeitos detidos pelas
polícias. Não há estudos nem contas sobre os custos da reincidência.
Especialistas alertam para esta falha, quando o Governo quer alterar as leis
penais. Conhecer a reincidência é fundamental para saber se as penas aplicadas
produziram o objetivo principal: evitar que condenados voltem a cometer crimes.
“É uma lacuna grave para o suporte de políticas e na ação do tribunais”, diz o
ex-ministro Laborinho Lúcio.
Governo
não sabe quantas pessoas voltam ao crime
Peritos
alertam para reformas penais feitas às cegas, sem estudos sobre reincidência
Valentina
Marcelino
Os
casos foram públicos: um violador condenado duas vezes saiu em liberdade
condicional e tornou a violar. Recorreu e, em liberdade, tentou de novo cometer
esse crime; um assaltante de bancos reincidente, condenado três vezes por mais
de 50 roubos, escapou em quatro ocasiões da prisão, duas das quais durante
saídas precárias que lhe foram concedidas, apesar dos antecedentes de fuga.
Ambas as situações são exemplos de uma das consequências para a segurança
pública da falta de conhecimento por parte do Estado, de forma sustentada e
atualizada, dos índices de reincidência criminal dos delinquentes e, em
particular, da falta de acesso em tempo útil ao cadastro total destes, por
parte de procuradores e de juízes. Essa é a realidade de Portugal.
Numa altura em que estão em cima da mesa novas propostas de alteração ao Código
Penal e ao Código de Processo Penal, por parte do Governo, estas decisões são
tomadas sem base científica e no meio da total ignorância quanto à eficácia das
medidas tomadas. Que criminosos mais reincidem e que tipo de penas são mais
eficazes? A pulseira eletrónica evita mais ou menos a reincidência que a
prisão? Que resultados em concreto têm os programas de prevenção e reinserção
social? De que prisões são os reclusos com maior taxa de reincidência e porquê?
E quanto custa ao Estado a reincidência? Não há resposta a estas perguntas. Foi
gasto dinheiro público na prisão (cada recluso custa, em média, 14 600 euros
por ano), mas quando volta a reincidir, não só o dinheiro foi desbaratado, como
a segurança não melhorou.
No Reino Unido – onde a redução do retorno ao crime é uma prioridade política
(ver texto em baixo) – foi calculado em quase 9 mil milhões de euros por ano o
custo da reincidência.
O Ministério da Justiça admitiu ao DN que “a informação sobre reincidência
criminal resulta de um trabalho específico e pontual de estudo e de avaliação é
datada e parcial, destinando- se a avaliações internas, uma vez que não se
procede ao registo, em base de dados, desta variável”. E, acrescenta, “as taxas
de reincidência apresentam, por norma, valores estáveis e de longa duração”.
O último destes estudos, genérico, já tem cinco anos e fixou a taxa em 29%. Mas
não é conhecido o perfil das reincidências. Em 2003, a Provedoria de Justiça
fez uma avaliação profunda das prisões e apresentou uma taxa de reincidência de
51%.
O atual provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, sublinha que “a não
reincidência, de quem já esteve preso, é um fator basilar na avaliação do
sistema penitenciário e do seu sucesso no oferecimento de ferramentas a cada
recluso para alcançar aquele fim”.
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público lembra que para
julgar em 48 horas, como propõe o Governo, é preciso “acesso mais célere ao
registo criminal, principalmente dos estrangeiros, que nem sequer está
informatizado”. Rui Cardoso salienta ainda a “limitação” do registo criminal
(só condenações transitadas em julgado) para ter o perfil do suspeito:
“Desconhecemos as medidas de coação pendentes e cada polícia tem a sua base de
dados, que não partilha.”
Apesar da falta de dados, o Ministério da Justiça propõe que os criminosos
deixem de ser obrigados a revelar os seus antecedentes. Juízes e procuradores
só admitem essa hipótese com o acesso na hora a todos os cadastros.
7000
milhões de euros é o custo anual, estimado no Reino Unido, das reincidências
criminais 14 600 euros é, em média, o custo anual de cada recluso no sistema
prisional português Ninguém sabe qual a taxa de sucesso do sistema prisional na
reabilitação dos condenados. Não há estatísticas que o revelem
Ingleses
travam reincidentes
TRANSPARÊNCIA
Reduzir a reincidência criminal é atualmente uma prioridade política do Governo
britânico. E o Executivo faz questão de informar os contribuintes sobre os
resultados das suas opções de política criminal. No site do Ministério da
Justiça as estatísticas de reincidência e sua caracterização estão online. “No
âmbito da política de transparência , o MJ informa sobre o impacto que as suas
decisões têm na sociedade, para que o público valorize o dinheiro gasto”, disse
ao DN o porta-voz do MJ britânico.
O acompanhamento das reincidências, cuja taxa se situa nos 26%, e o estudo dos
seus motivos permitem, por exemplo, saber que reincidem mais os criminosos com
penas até um ano do que os que foram obrigados a cumprir trabalhos ‘ forçados’
nas comunidades. “Prender só não chega; é preciso que não reincidam. Senão é
desbaratar dinheiro e a sociedade mantém-se insegura”, diz Marian Fitzgerald,
criminologista da Universidade de Kent.
Laborinho
Lúcio, ex-ministro da Justiça
“Só se
combate eficazmente o que se conhece”
Qual a
importância de conhecer a reincidência criminal?
É indispensável em dois planos. O primeiro, no que toca à definição das
políticas criminais. Por um lado, é o conhecimento daquela taxa que permite
avaliar o resultado das medidas de política entretanto adotadas para combater o
crime e a sua repetição pelo mesmo agente; por outro lado, é a partir desse
conhecimento que é possível definir estratégias e objetivos concretos em sede
de intervenção, seja no plano legislativo seja no das práticas ligadas à
execução das penas. O segundo plano é aquele que toca já a intervenção judicial,
nomeadamente em matéria de condenação criminal.
O que
falha se esta avaliação não for conhecida?
Sem uma noção tão rigorosa quanto possível da taxa de reincidência,
dificilmente será possível programar e definir políticas que, relacionadas com
a matéria dos fins das penas, permitam intervir de modo a que a escolha destas
e a sua respetiva medida se voltem para a redução da própria reincidência.
Afinal, só pode combater-se eficazmente aquilo que se conhece bem.
Que
mecanismos devia o Estado proporcionar aos juízes e aos procuradores para
garantir que os antecedentes do suspeito são tidos em conta na medida de coação
aplicadas?
Antes de mais, seria importante a elaboração e a disponibilização de estudos,
quer quantitativos quer de investigação empírica, tendo como objeto a
reincidência. Por outro lado, a disponibilização aos tribunais da informação
sobre reincidência terá de ser necessariamente mais célere do que é sempre que
se trata de registo criminal positivo. Finalmente, a vingar a proposta de alargamento
do julgamento sumário a todos os crimes, desde que praticados em flagrante
delito, a informação sobre a existência de reincidência é fundamental para que
se decida sobre a continuação do julgamento, da sua suspensão, ou da remessa do
processo para os meios comuns.
Diário
de Notícias de 20-06-2012