Numa investigação de abuso sexual de crianças, onde tombam nomes de gente famosa, pede-se o registo das chamadas feitas a partir do telefone de um dos suspeitos. Por azar, um telefone em nome do Estado, dos muitos que por aí param em boas mãos e para que todos nós contribuímos civicamente.
Um zeloso funcionário da operadora responde e, vá-se lá saber porquê, para além do que foi pedido, junta ao pacote encomendado algumas dezenas de milhares de outros registos do mesmo cliente, o Sr. Estado. Diz a operadora, muito naturalmente, que «o sistema informático gera a informação agregada por cliente e não por número da linha da rede». Perante esta fatalidade, o mesmo funcionário, muito diligente e inocentemente, segue o caminho mais difícil - oculta com um «filtro informático» o excesso de dados «referentes a outros números do mesmo cliente», o tal Sr. Estado, e manda tudo, muito bem embrulhado, camuflado e encriptado, aos investigadores dos abusos, sem que estes o saibam. Assim nasce um envelope, crismado de “Número Nove”.
Os investigadores e todos quantos, de boa fé, tiveram que manusear o pacote, não se aperceberam da excrescência. Nem tinham razões para suspeitar da existência do presente envenenado, tanto mais que provinha de um entidade também do Sr. Estado, administrada por gente de respeito, logo de bem.
A investigação prossegue, prossegue, sempre com o “Número Nove” ao dependuro. O processo muda de fase, muda de mãos, leva trambolhões, é analisado, escalpelizado, espezinhado, maltratado, vilipendiado, e ninguém, ao longo de meses e anos, se dá conta do abcesso. Até que, em vésperas de eleições, quando o Presidente está de malas aviadas e não dá sinais de grandes mudanças, alguém se lembra de lhe sobressaltar o sono. Não por causa do “Número Nove”, mas de quem é tido por seu guardião; não por causa dos registos, mas, a pretexto destes, do frete que não foi prestado e da integridade que não foi possível domar.
É assim que alguém que não dá a cara, por artes do maligno, consegue descobrir que o ficheiro escondido no “Número Nove” estava prenhe de informação. Que alguém que manobra na sombra, lhe topa o filtro e lhe retira o manto diáfano... da pulhice. E como, nestas coisas, há sempre quem não tenha escrúpulos e esteja pronto a vender a alma ao diabo, é assim que alguém, que se acobarda no anonimato, põe um jornal de muitas horas a fazer o rebentamento da bomba tecnológica.
O acto terrorista foi consumado. O resto é o que se vê.
A campanha eleitoral é suspensa. Os candidatos botam palpite, alguns fazem ameaças, lançam reptos, condenam antes de julgar, mostram como usariam os poderes presidenciais se já os tivessem (ainda bem que o fazem, pois assim mais prevenido se fica). As carpideiras contratadas dão largas à histeria colectiva. A imprensa redobra as tiragens e os lucros. Os catedráticos do costume perdem o tino e o senso. Opinadores assalariados lançam dedos em riste. Todos se afadigam em descobrir e crucificar os culpados que lhes convêm.
Do cobarde que, anonimamente, preparou e executou toda esta agitação, ninguém se lembra. O jornalista que despoletou o engenho, acoberta-se atrás da libertinagem de imprensa e do segredo gloriosamente chamado profissional, e, com um sorriso de inocência, limpa as mãos sujas da pólvora.
Das vítimas dos abusos sexuais, dessas, coitadas, já ninguém fala. E sobre os senhores que gostam de pilinha de menino e de cuzinho pobre, paira uma névoa de esquecimento e perdão.
O que é preciso é arranjar um bode expiatório, mesmo inocente, apedrejá-lo, cuspir-lhe na honra, levá-lo ao cadafalso. O que é preciso é descredibilizar e enlamear a Justiça, antes que o processo, com ou sem o pendericalho do “Número Nove”, chegue ao fim. O que é preciso, é animar a malta.