JOSÉ
PACHECO PEREIRA
É verdade que a "vida custa
a todos", mas por cima custa bastante menos. Os dilemas são soft, em baixo são hard
Correm paralelos dois tempos no
Portugal da crise: um corre em cima e é marcado essencialmente pelos de cima;
outro corre em baixo e é sofrido pelos de baixo. Não comunicam entre si, embora
se relacionem pela acção de uns, e pelas consequências em outros. O drama da
nossa democracia em tempos desta crise encontra-se nessa incomunicabilidade que
os distancia irremediavelmente um do outro, criando uma situação disfuncional e
explosiva. Quem não entende que isto se está a passar e a agravar-se bem pode
prevenir-se. É que o tempo não corre da mesma maneira em cima e em baixo.
O tempo dos de cima é resultado
de uma interacção complexa entre o tempo político-partidário, o tempo
político-institucional, o tempo da economia, e o tempo mediático. No seu
conjunto geram uma corda entretecida de fios comuns, que se desenvolve coerentemente
entre si. Este fio temporal, insisto, desenrola-se à margem da percepção das
pessoas comuns, cujo tempo é muito distinto.
O tempo político-institucional é
marcado pelas instituições e procedimentos da democracia. É um tempo
relativamente rígido - define duração de mandatos, datas de eleições,
competências de órgãos, poderes e atribuições. Inclui, no entanto, também
factores de ruptura e instabilidade. Crises de governação, geradas por
coligações imperfeitas e de má vontade, decisões de tribunais e poderes
presidenciais podem dissolver órgãos eleitos e definir alterações do tempo
institucional. Em Portugal, apesar da relativa estabilidade formal das
instituições, já houve várias rupturas recentes, como seja a dupla dissolução
da Assembleia da República com Santana Lopes em 2005 e com Sócrates em 2011.
Apesar disso, embora haja factores de instabilidade na actual situação, elas
não são de molde a que se possa prever com certeza qualquer ruptura a curto
prazo.
O tempo económico é por regra
geral lento, e apesar de ter alguma autonomia em relação ao tempo político, é
em tempos de crise muito sensível a este. No entanto, é mais errático do que se
pensa e os seus efeitos não se manifestam todos no mesmo sentido, nem nas
empresas, nem na sociedade "económica", nem nas pessoas. Não actua de
forma comum: pode beneficiar, por exemplo, o sector financeiro e ser devastador
para as empresas, pode melhorar alguns números macroeconómicos e ser
irrelevante para a vida concreta das pessoas. Pode ser, e é, como sistema muito
complexo, em grande parte imprevisível. Só os economistas-políticos,
neoliberais ou marxistas, é aqui o mesmo, é que pensam existir uma correlação
simples entre medidas económicas e efeitos sociais e menosprezam a mediação do
político orgânico, ou as turbulências inorgânicas dos de baixo. Os
economistas-políticos, repito de novo, sejam neoliberais ou marxistas, estão
por isso sempre a ter "surpresas".
O tempo mediático é na realidade
o espelho de todos os outros, em particular do tempo político-partidário, e
molda-o a ciclos que lhe são próprios. A hegemonia da narrativa comunicacional
sobre a narrativa política faz com que as duas se desenvolvam do mesmo modo e
ao mesmo ritmo. Muito pouca coisa que aí se passa - arranques, travagens,
acelerações, mudanças do positivo para o negativo, ciclos de sucesso e falhanço
- tem alguma coisa a ver com o tempo dos de baixo.
Veja-se por exemplo, o ciclo da
novidade, mecanismo fundamental da comunicação social, em que o que aparece
como novo, mesmo que seja o que está esquecido há poucos meses, pela curta
duração da memória comunicacional, tem um valor de per se, mesmo que objectivamente não
tenha nenhum significado. A este ciclo de procura da eterna novidade está
associado um outro ciclo de dualidades, a mais importante sendo a da
euforia-depressão, ou sucesso-falhanço, positividade-negatividade. A procura da
novidade leva a que haja surtos de ascensão e queda previsíveis. Passos Coelho
já esteve na alta, agora está em baixo, na semana seguinte está em alto, Gaspar
a mesma coisa, Álvaro Santos Pereira parece um ioiô de incompetência numa
semana e noutra semana motivo de expectativas ilimitadas.
De um modo geral, Governo e
oposição alteram as graças da comunicação, fenómeno exagerado pela amplificação
do sistema político-partidário desses ciclos alternantes. A ida aos mercados
foi acolhida com muito entusiasmo acrítico da comunicação social, beneficiando
aqui uma operação de propaganda governamental, porque permitia a
"novidade": o Governo estava a acertar, após meses a falhar. Do mesmo
modo, a oposição beneficia desse corso-ricorso, com uma ampliação do efeito de qualquer pedra na
engrenagem de uma acção governamental tida como vantajosa. É um pouco simples,
mas eficaz. As empresas de comunicação e imagem, a miríade de assessores nos
gabinetes governamentais, usam estes mecanismos para obter efeitos positivos ou
minimizar desastres políticos tidos como "erros de comunicação".
Nesta narrativa comunicacional,
que os partidos políticos levam para o Parlamento em "intervenções políticas"
que são um reflexo da imprensa do dia, nós assistimos à criação de um tempo
político virtual. Todos estes tempos de cima podem ser sintetizados na sua
força virtual, e na sua fraqueza real, pelas afirmações sobre a luz ao fundo do
túnel. Aqui, economistas, banqueiros, jornalistas, comentadores, políticos,
empresários entretêm-se à compita em dizer que saímos da crise em finais de
2013 (já foi em 2010, 2011, 2012, 2013, logo no início), ou em 2014, ou depois
de 2015, ou depois de uma década. Talvez em nenhum tipo de afirmações,
predições, adivinhações, desejos, seja mais nítido a separação dos tempos entre
os de cima e os de baixo, como aqui.
Quem é o "nós"? Não é
certamente os de baixo, os que estão na mó de baixo, os que estão a descer, os
que estão a empobrecer, os que já são pobres. Não adianta fazer muitas
precisões sociológicas, basta dizer que são a esmagadora maioria dos
portugueses. "Nós", o povo português.
O tempo destes é de natureza
muito diferente do tempo dos de cima. É dramático, em primeiro lugar. Os de
cima podem dizer "atravessamos tempos difíceis", mas eles não são o
paradigma desses tempos difíceis. Podem estar a sofrer algumas dificuldades,
mas a sua margem de manobra é infinitamente maior. É verdade que a "vida
custa a todos", mas por cima custa bastante menos. Os dilemas sãosoft,
em baixo são hard.
Em cima pode haver dificuldades,
em baixo há desespero. É por isso que não significa rigorosamente nada para os
de baixo, que depois de baterem no fundo todos os números, da economia, do
desemprego, do PIB, haja uma pequena recuperação. Tudo o que sobe tem de descer
e tudo o que desce a uma dada altura deixa de descer. Mas o que significa isso
para o tempo de um desempregado de "longa duração"? Vai ter emprego
em 2015? Vai poder dar uma educação superior aos seus filhos como podia dar em
2007? Vai poder pagar a renda de casa? O que significa isso a quem perdeu a
casa para o banco em 2011, 2012, 2013, vai poder recuperá-la em 2014, ou 2015,
mesmo que se saia da recessão? Quem viu falir a sua pequena empresa, de que
vivia o "patrão" e dois ou três empregados, no comércio ou na
restauração, vai poder reabri-la depois da ida protegida pelo BCE aos mercados?
Quem deixou de poder pagar ao fisco e tem uma execução sobre os seus escassos
bens, sobre o seu salário, vai poder de repente ganhar mais para pagar os seus
impostos altíssimos?
O tempo para estes portugueses
não tem folga nenhuma, nem ciclos de novidade, nem surtos de depressão e
euforia. A sua vida centra-se no fim do mês até à primeira conta que não pode
pagar. A sua vida não conhece "novidades" mediáticas, nem luzes ao
fundo do túnel, nem que seja para daqui a um ano. Se aguentar significa
continuar vivo, como na frase vil de um banqueiro, que trata os sem-abrigo como
exemplo aceitável, muitos vão continuar vivos. Aleluia! Outros vão morrer na
tristeza e no desespero e outros pedirão à morte que venha com pressa. Mas o
tempo de todos é imediato, doloroso, sem futuro, para eles não tem qualquer
significado nada que não mude a sua condição a muito curto prazo.
A profunda doença da nossa
democracia, em Portugal de 2013, é que os que vivem no tempo dos de cima nada
têm a dizer aos que vivem no tempo dos de baixo. Os políticos, os partidos, que
em democracia só ganham sentido quando exprimem os interesses, as necessidades,
as dificuldades de todos, insisto de todos e no presente, falham esse dever.
É possível? Claro que é possível.
É só saber olhar, saber ver, saber falar com, e saber decidir em função dos
interesses de muitos. É fazer as escolhas certas e não se distrair. É olhar
para o salário do fim do mês, para a vida no desemprego, para o que diz, com
inteira clareza, a Cáritas, em vez de estar obcecado com o jornal do dia
seguinte. O maior risco da nossa democracia é que quem devia falar está calado,
e que quem fala devia estar calado.
Historiador. Escreve ao sábado