domingo, 5 de agosto de 2007

Trindade Coelho e o direito (IV)

[...]
Mas um dia quando menos o esperava fui transferido para Ovar (perto do Porto), que era outro foco político pior do que Portalegre! O decreto da minha transferência alegava «conveniência de serviço público», – mas, sabidas as coisas, era conspiração amável que tinha por fim tornar possível a minha eleição de deputado (!) por Portalegre, eleição que seria legalmente impossível se lá estivesse exercendo funções públicas ao tempo das eleições, ou tivesse saído de lá a requerimento meu.
O governo era já de outro partido político; as eleições deviam ter lugar dentro de poucos meses – e o Ministro da Justiça [1], que eu não conhecia pessoalmente, escreveu-me explicando a minha transferência, e pedindo-me que viesse a Lisboa falar com ele.
Não sabia o Ministro o que o esperava; e ainda estou a ver a cara de espantado que fez quando eu lhe disse que não queria ser deputado.
– Mas eu despacho-o juiz!
– Nem assim. Não quero. Iria preterir colegas meus mais antigos: não quero! (Os juízes de direito, em Portugal, saem da classe dos delegados, por antiguidade, e eu era dos mais novos.)
– Mas os seus serviços são distintos, e a sua promoção a juiz será «por distinção».
– Pior. Seria uma injustiça. Tenho feito o meu dever, e mais nada. Não quero.
E não quis; e ele ainda me disse que eu ficaria o juiz «mais novo» de todo o País, e que «nossos pais podiam recomeçar a vida pelo princípio, mas que nós tínhamos de a começar ao menos pelo meio». (Palavras textuais.) A minha resposta continua a mesma:
– Não quero.
E não quis. Com promessa de ser transferido de Ovar para Lisboa, fui para Ovar – onde os políticos me receberam na ponta das espadas, desconfiados daquela «conveniência de serviço público» que para lá me levava – e que não era nenhuma...
A comarca estava num estado de desordem muito parecido com a anarquia; mas, serenamente, trabalhando de dia e de noite, num quarto de hotel, regularizei o serviço não tardou muito.
Tinha, e ainda tenho, o costume de não deixar que fazer de um dia para o outro; e em menos de um mês tudo estava em ordem – e, ao sair de Lisboa, o periódico local que mais desconfiadamente me recebera (o Ovarense) dedicava à minha saída um amável artigo, e lamentava-a – dizendo que nunca magistrado algum entrara em Ovar em piores condições de desconfiança do que eu; mas que em breve «todos se desenganaram de que o Sr. Trindade Coelho estava resolvido a fazer justiça direita, e que a balança da lei não se moveria nas suas mãos de magistrado»; que «não era delegado de quem se pudesse fazer o que se quisesse» e que «breve desapareceu a opinião de que o novo delegado poria ao serviço de rancores políticos a acção poderosa da lei» pois que «não era de molde a antepor a interesse de qualquer natureza a honra do seu cargo e os créditos do seu nome».
Em Portalegre o mesmo me sucedera: quando parti de lá, a população da cidade acorreu a despedir-se de mim, e dizem-me que ainda hoje sou lá muito lembrado – e o povo considerava-me como «seu amigo», não obstante esse meu papel oficial de representante do Ministério Público, e portanto de acusador... No meu papel simultâneo de «curador dos órfãos», cheguei a pôr oficialmente à disposição destes os meus 11 mil réis de ordenado mensal, para atenuar a cupidez de alguém que não duvidava sacrificar aos seus os interesses dos órfãos. (Só aludo a isto por ter sido um facto oficial e portanto público, e constar de documentos impressos).

[1] Lopo Vaz de Sampaio e Melo.
Trindade Coelho, «Autobiografia», in Os Meus Amores

Contraste

O Patologia Social, em estilo mais memorialista, prepara-se, remoçado, para a “época de recurso”, enquanto o Cum Grano Salis, em insosso solilóquio, lá vai definhando...
É a vida…!