A erosão do “princípio da legalidade”
conduzirá, por isso, a sociedade a uma situação anterior às Luzes
1. Um dos problemas que a erosão do
valor e da força ordenadora da ordem jurídica provocam é a deriva autoritária
que permite.
Fora de uma ordem jurídica estável,
isto é, fundada em princípios gerais de direito e social e democraticamente
validada, desaparecem limites e referências na condução da política, da vida
social, da economia, das relações familiares, das próprias condutas pessoais.
Manda ilimitadamente o mais forte.
Não havendo lei, ou podendo quem manda
criá-la ex novo e para além dos limites da Constituição, “legal ou ilegal” é
sempre aquilo que alguém que pode quiser que seja. Os regimes ditatoriais
sabem-no bem.
A erosão do princípio da legalidade
conduzirá por isso a sociedade a uma situação anterior às Luzes ou, pior ainda,
a uma ordem (nova) emanada da vontade divinizada de um chefe, que ontem podia
ser Hitler, mas hoje pode ser, mais obscuramente, uma qualquer e indefinida
entidade denominada mercados.
2. Hoje, em função de um pragmatismo
despojado já de qualquer sentido político aparente, que não aquele com que o
motu continuo de uma economia à deriva impõe aos povos, estamos
desamparadamente à mercê dos agentes geradores de uma lei instantânea, cujos
princípios (re)fundadores se desconhecem e que por isso nunca se fixa.
Consequentemente, nenhuma conduta
humana pode, com a mínima certeza, ser por ela verdadeiramente orientada: o
cidadão e o comércio dos homens ficam portanto reféns de uma insegurança
querida e promovida simultaneamente a instrumento e objectivo de governação
política e jurídica.
Huxley, Orwell e Philip K. Dick nem
ousaram ficcionar tanto e tão bem o horror do mundo novo.
3. A lógica que antes enunciei não se
materializa apenas nos centros que produzem instrumentos normativos abstractos
(leis); incorpora-se e reproduz-se também nalguma prática judicial.
Daí que, em alguns casos e por força
dos populismos reinantes, tenda a converter-se até em corrente jurisprudencial
ou, mais acriticamente, em pura praxis processual, pois assumida cegamente por
alguns dos seus agentes.
O objectivo, mais do que a valoração
isenta das condutas, tornou-se por isso a justificação de certas normas e
intervenções judiciais e, como referia Teubner, a escolha prévia da regra
aplicável acontece e resulta apenas – e depois – de uma opção por uma solução
politicamente correcta do caso concreto.
Acusar um indivíduo da violação de uma
norma que não está seguramente identificada, obrigá-lo a defender-se da
imputação de um crime, que só a opção posterior por uma solução jurídica alheia
à inventiva do agente permite conceber como tal, pode, neste contexto,
tornar-se uma extraordinária arma de contenção e de medo.
Contava-se que uma das técnicas do
anterior regime para controlar os funcionários consistia precisamente no
estabelecimento de normas de responsabilização tão difusas e abrangentes, que
podiam abarcar (se se quisesse) toda uma cadeia de ordenadores a executores,
que, claro está, viviam atemorizados (e obedientes) pela perspectiva de
poderem, arbitrariamente, ser acusados de uma qualquer e inimaginada
irregularidade.
Um dos problemas do nosso sistema
jurídico e judicial é a dificuldade que, a certos níveis, alguns dos seus
agentes têm, ainda hoje, em pensar politicamente a sua função e analisar
criticamente o respectivo exercício e suas consequências.
Provocar esta incómoda reflexão nos
juristas é hoje, de novo, uma das preocupações do movimento associativo
judiciário europeu e democrático.
Jurista e presidente da MEDEL