1. É aceitável que os jornais publiquem opiniões «ofensivas». Todas as opiniões são potencialmente ofensivas. E só o politicamente correcto mais doentio ou o reaccionarismo mais infecto admitem que existam outros limites que não os consagrados na lei de imprensa e no código penal. As opiniões inadmissíveis são essencialmente as que caluniem ou ofendam de forma grave pessoas concretas, sobretudo se alegarem falsidades lesivas da sua integridade moral. Já as opiniões que ataquem ideias ou convicções são todas admissíveis, porque a liberdade de crítica e sátira (mesmo a mais selvagem) faz parte integrante do núcleo inalienável da liberdade.
2. Os cartoons sobre Maomé e os muçulmanos são sensatos e pertinentes? É uma questão de opinião. Uns serão inócuos, outros perspicazes e outros patetas. Mas os cartoons em causa não ultrapassaram nenhum dos limites da liberdade de expressão. O que é lamentável nesta polémica é que haja gente no Ocidente que discute mais afincadamente a sensatez dos cartoons do que a absoluta admissibilidade dos cartoons, como se a cautela fosse mais importasse que a liberdade.
3. As opiniões racistas, xenófobas ou quaisquer outras são admissíveis, desde que não incitem directamente à violência. Uma pessoa pode atacar nos termos mais violentos os católicos, os pretos, os árabes, os comunistas, os homossexuais, os conservadores e assim por diante. Algumas dessas opiniões são detestáveis e cheiram mal à légua. Mas a liberdade de imprensa é também a liberdade de exprimir opiniões detestáveis. É também a liberdade da estupidez e do lixo. O importante é lembrarmos que opiniões são opiniões, não são actos. Quando criminalizamos as opiniões (mesmo as mais detestáveis) estamos a demolir por dentro a nossa liberdade.
4. Podemos criticar, satirizar e atacar todas as ideias e convicções, incluindo as religiosas. É isso que define a liberdade. Quem se sente ofendido protesta, responde, escreve cartas, faz petições, organiza boicotes, exprime o seu desagrado por meios pacíficos. Contesta as opiniões, não contesta a liberdade de expressão.
5. As convicções e as leis de uma comunidade religiosa só vinculam os crentes dessa religião. Eu tenho direito a representar Maomé, a comer carne de porco, a trabalhar ao sábado e o mais que me apetecer. Assim como um muçulmano ou um judeu ou um ateu têm direito a não ligar nenhuma aos meus costumes e crenças e usos católicos.
6. Numa democracia, as pessoas não têm o direito de protestar com actos de violência. E o conceito de actos de violência inclui apelos directos ao homicídio (como os que ouvimos na boca de alguns muçulmanos ingleses).
7. Não há civilizações «superiores» em abstracto. Mas há sociedades organizadas de modo globalmente mais justo e mais decente. A Dinamarca (em 2006) é uma sociedade mais justa e mais decente do que o Irão (em 2006). Não numa abstracção «civilizacional» mas no concreto dos direitos, liberdades e garantias, do nível de vida e das condições necessárias à dignidade humana. Os ocidentais que dizem o contrário disto estão em simples denegação sectária. Ninguém prefere viver no Irão do que na Dinamarca. É apenas nesse sentido que a Dinamarca é «superior» ao Irão. Mas esse sentido não é coisa de somenos.
8. No Ocidente, valem as regras do Ocidente. As regras que estão plasmadas nas nossas constituições, na nossa legislação e nos nossos costumes. Quem não aceita essas regras básicas - quem acha nomeadamente que pode apelar ao homicídio por delito de opinião - não tem lugar nas nossas comunidades. Temos o dever de tolerar opiniões intolerantes, mas não temos o direito de tolerar actos intolerantes e criminosos.
9. O conflito entre civilizações não deve ser fomentado. A abdicação também não.
Pedro Mexia, http://estadocivil.blogspot.com/
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