quinta-feira, 9 de maio de 2013

9 DE MAIO; DIA DA EUROPA: PENSAR O ESPAÇO JUDICIÁRIO PENAL EUROPEU


9 DE MAIO, DIA DA EUROPA:
pensar o Espaço Judiciário Penal Europeu

                                                                                                                        
 JL Lopes da Mota

Hoje é dia de celebração da Europa, de evocação dos valores civilizacionais que a tornaram possível. A simbologia que esta data encerra remete-nos para o momento fundador – 9 de Maio de 1950, dia da declaração de Robert Shumann.
As matérias da liberdade, da segurança e da justiça, que definem o espaço penal europeu, não se inscreviam nos objectivos iniciais do projecto. Eram económicas as preocupações de então e assim o foram durante mais de três décadas.
Quando, em 1977, Giscard d’Estaing, avançou, pela primeira vez, a ideia da criação de um espaço judiciário europeu, o projecto não recolheu entusiasmo. Foram precisos mais vinte anos para que a expressão “espaço judicial” passasse a integrar o léxico europeu.
Foi longo esse caminho e foi o Tratado de Amesterdão que o permitiu, ao fixar um objectivo à União Europeia: a construção de um espaço de liberdade, segurança e justiça. Quase trinta anos depois foi, de novo, o mesmo homem – Giscard d’Estaing – que presidiu à Convenção de que resultou o projecto mais ambicioso do tempo presente: o do Tratado Constitucional para a Europa que o Tratado de Lisboa incorporou integralmente, nas matérias relacionadas com a justiça penal.
O Tratado aí está, visando uma Grande Europa, também na área da justiça e da segurança, inspirada pelos valores inscritos na sua génese, assentes na inalienável dignidade da pessoa humana. Nunca é demais recordá-lo nos tempos que correm, em que os mercados, a economia, as finanças esmagaram o espaço público e remeteram o direito e os direitos para o escuro da cave onde se guardam as velharias.
Se Amesterdão representou uma ruptura com o paradigma tradicional de cooperação, conferindo à justiça penal uma dimensão europeia, o Tratado Constitucional e o Tratado de Lisboa – de Lisboa, sublinhe-se! – introduzem avanços maiores no modelo instituído. Lá está o mesmo objectivo – o espaço de liberdade, segurança e justiça, que de espaço em construção passou a espaço institucional e juridicamente estabelecido –, mas utilizando formas e métodos muito mais ambiciosos.
A experiência dos últimos anos de construção europeia na área da justiça penal mostra realizações impensáveis quando, em 1999, o Tratado de Amesterdão entrou em vigor. Olhando o texto do Tratado quem, na ocasião, via nele a base para que uma decisão judiciária proferida num Estado pudesse ser válida e eficaz noutro, como se de uma decisão nacional se tratasse? Ou para que um órgão europeu com competências em matérias penais, constituído por procuradores e juízes, pudesse ser instituído?
Mas a experiência mostra também a necessidade de ir mais longe. Se os Estados se obrigam, através de instrumentos jurídicos autovinculantes, porquê então os deficits de efectividade de muitos destes instrumentos? Estou a pensar obviamente no tema da transposição das decisões-quadro – agora substituídas por directivas –, tantas vezes tardia e deficiente, que a inexistência de mecanismos efectivos de controlo e sanção não pode prevenir. Tema que nos remete para outro, o do controlo jurisdicional, pelo Tribunal de Justiça, que o Tratado de Lisboa veio instituir.
É certo que as matérias relacionadas com a criação do espaço judiciário penal europeu se mostram de singular sensibilidade e complexidade. Inscrevem-se no domínio do “imperium” dos Estados, detentores do monopólio de perseguir e punir, afectam directamente direitos e liberdades dos cidadãos, ligam-se a valores fundamentais que os diversos Estados entendem proteger penalmente, convocam questões de legitimidade democrática e pressupõem elevado grau de confiança mútua que não pode ser criada por decreto. Mas também é certo que a avaliação da experiência e dos resultados e os trabalhos ligados ao nascimento do Tratado Constitucional e do Tratado de Lisboa constituem um acquis valioso que não só não pode ser ignorado, como deve ser especialmente valorizado, nos “anos de chumbo” que agora vivemos.
Do que se trata, no fundo, é de prosseguir, aprofundar e consolidar o projecto inacabado de Amesterdão: a construção de um verdadeiro “espaço” judiciário penal europeu, garante da protecção de valores fundamentais comuns e partilhados, dos direitos fundamentais e da democracia.
A noção de “espaço” representa um conceito original e inovador.
Estando já muito distante da cooperação judiciária penal interestadual clássica, e ainda longe de uma ideia de território europeu, o conceito de “espaço” obriga os Estados-Membros a repensar o exercício da soberania penal fundada na territorialidade e a uma acção de “soberanias partilhadas” (na expressão de Mireille Delmas-Marty). É por demais evidente que, num espaço de livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, perante os “não-lugares” da criminalidade da globalização (a referência é a Marc Augé), nenhum Estado, agindo isoladamente, está em condições de enfrentar os novos fenómenos criminais transnacionais.
O desafio que se coloca é, pois, o de pensar simultaneamente a unidade e a diversidade, na sua complexidade, e as transformações aceleradas do tempo e do espaço, do local e do global que se interpenetram. Por definição, o espaço representa um conceito abstracto e dinâmico, compreensivo de realidades e identidades diversas. Embora contendo implícita a noção de fronteiras, o espaço judiciário europeu constitui um conjunto institucional e normativo instituído em vista da realização de fins claramente identificados nos Tratados e assente no respeito e promoção dos valores do Estado de Direito e da cidadania.
É neste contexto que se impõe olhar o presente e perspectivar o futuro.
O momento fundador da Europa contém o marcador genético dos valores do direito e da justiça, inerentes à paz duradoura que se visava garantir.
Se é certo que os avanços iniciais ocorreram no âmbito do Conselho da Europa, o desenvolvimento do Mercado Comum cedo apelou à sua adaptação ao espaço comunitário. É assim que, nos anos 80, se assiste a um impulso à margem dos Tratados, no âmbito da denominada “cooperação política europeia”, e ao lançamento das bases do espaço Schengen cujo acervo é integrado nos Tratados, em Amesterdão.
Schengen, saliente-se, assume importância maior, ao instituir a regra de contactos directos entre autoridades judiciárias no âmbito do auxílio mútuo. É esta possibilidade que funda a judiciarização da cooperação, justificando a criação da rede judiciária europeia e inspirando os desenvolvimentos que conduzem à criação da Eurojust e a consagração e funcionamento do princípio do reconhecimento mútuo em que assentam os mais recentes instrumentos adoptados, com particular destaque para o Mandado de Detenção Europeu.
Maastricht e, sobretudo, Amesterdão permitiram progressos consideráveis: estabeleceram-se redes (rede judiciária europeia, academia europeia de polícia, rede de formação de magistrados), constituíram-se bases de dados (SIS, sistema informático aduaneiro, sistema informático da Europol), criaram-se órgãos de cooperação (Europol, Eurojust), surgiram conceitos inovadores (espaço, reconhecimento mútuo) e novos instrumentos jurídicos que gradualmente substituíram as convenções (acções comuns, decisões, decisões-quadro). 
O espaço penal europeu assenta num acquis complexo de normas nacionais e europeias. Gera-se na base de um mosaico de sistemas nacionais em interacção, de interlegalidade, em que se detectam linhas de força divergentes, de limitação e expansão, ao nível da sua conformação e aplicação territorial. Em consequência, as opções dos Estados em matéria de política criminal autolimitaram-se, expandiram-se e enriqueceram-se reciprocamente, numa linha de confluência entre uma lógica de integração e de um princípio de preservação das identidades nacionais.
Com força jurídica e finalidades diversas, umas orientadas para a harmonização de legislações ou para a efectivação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais, outras centradas na melhoria do funcionamento da cooperação, os actos da União vêm moldando, com intensidade acrescida, os sistemas dos Estados-Membros.
A análise destes factores possibilita a identificação, mesmo que fragmentária, de um embrião de política criminal europeia. O Tratado vem definir as linhas conformadoras de uma verdadeira política criminal, com base na asserção de que os grandes vectores da construção do espaço penal europeu – o reconhecimento mútuo e a harmonização – não podem senão desenvolver-se paralelamente, não só por razões práticas, mas, acima de tudo, por necessidade de referência a valores e prioridades comuns.
No que diz respeito ao âmbito de aplicação das normas, a evolução recente coloca em crise o princípio da territorialidade, na sua formulação tradicional. O funcionamento do princípio do reconhecimento mútuo e a possibilidade de realização de actos de cooperação de acordo com as leis de outro Estado levaram o direito nacional a romper fronteiras, interagindo de forma cada vez mais intensa com os demais direitos nacionais, fora do seu próprio território. As leis nacionais tornaram-se, assim, elas mesmas, “leis europeias”, num sistema de complexidade acrescida.
É neste quadro que há que contextualizar os desenvolvimentos do espaço penal europeu, equacionando-o à luz da emergência de um sistema penal europeu. Refiro-me a quatro vectores que, agindo conjuntamente, constituiram, por assim dizer, a “acendalha” do sistema: o reconhecimento mútuo, a harmonização, a criação de actores judiciários europeus e afirmação da União Europeia como sujeito de relações internacionais. O desenvolvimento destes vectores – acelerado pela resposta ao terrorismo internacional – ancora-se em quatro medidas emblemáticas, adoptadas no início da década de 2000: na decisão-quadro sobre o mandado de detenção europeu, na decisão-quadro sobre o terrorismo, na decisão que cria a Eurojust e na celebração do acordo em matéria de auxílio judiciário e extradição entre a União Europeia e os Estados Unidos da América.
Pela sua natureza multicompreensiva, as realizações institucionais congregam vertentes várias de sistema. A Eurojust simboliza, ao nível institucional, a definitiva ultrapassagem da lógica de cooperação horizontal interestadual, que se esgota em si mesma pela satisfação de interesses exclusivos dos Estados. Com a Eurojust, a cooperação passa a servir a realização de uma justiça penal europeia e lançam-se as bases para uma Procuradoria Europeia, que nascerá “a partir da Eurojust”.
Pela natureza das questões envolvidas, o tema da Procuradoria Europeia adquire natureza “constitucional”. Estão em causa, nomeadamente, aspectos relacionados com o direito de perseguir e punir, a unificação de normas relativas à definição de crimes e penas e processuais, e o impacto na arquitectura dos sistemas judiciários que constituem matéria de “reserva de lei” dos parlamentos nacionais. A questão da constituição de um órgão europeu com poderes de decisão para iniciar e dirigir investigações, exercer a acção penal e levar a arguidos a julgamento convoca problemas de sistema que se prendem directamente com a própria evolução política da União.
Ao prever a possibilidade de criação de uma Procuradoria Europeia – Procuradoria Europeia, não Procurador Europeu, sublinhe-se, dadas as diferenças essenciais implicadas ao nível da natureza, composição, organização e funcionamento do órgão em perspectiva – “a partir da Eurojust”, o Tratado operou uma síntese de projectos de diferente natureza, comunitária e intergovernamental, que se vinham desenvolvendo em tensão acrescida.
Um novo patamar foi atingido. Já não se trata de discutir a necessidade de órgãos europeus na área da justiça penal, mas de lhe dar forma e conteúdo.
Abrem-se as portas a um outro tipo de debate, incidindo sobre uma política criminal para a Europa, cuja execução é garantida, em primeira linha, pelos órgãos do Ministério Público de cada Estado, e, ao nível europeu, por uma Eurojust com funções reforçadas de coordenação e apoio aos procuradores nacionais, pela Europol, com funções de coordenação e apoio às polícias nacionais, por uma Procuradoria Europeia com poderes de exercer a acção penal.
Há , pois, que pensar os órgãos e agentes de um sistema em criação.
A ideia da Procuradoria Europeia apela necessariamente ao desenvolvimento ou criação de outros órgãos, seja por razões de operacionalidade, seja de garantia judiciária de direitos fundamentais. Desde logo, a serviços de polícia e investigação: a eficácia da Procuradoria Europeia depende de meios e capacidade de acção, sem o que a sua autonomia e poderes de direcção ficam vazios de sentido, qual monstro com cabeça e sem pernas; depois, à instituição de órgãos de controlo judiciário da investigação e da acusação; e, finalmente, à própria necessidade de ponderação de instâncias supranacionais de julgamento para crimes específicos.
Estamos obviamente ainda muito longe de um sistema desta natureza, com tal multiplicidade de actores. As portas apenas se entreabriram, sendo certo que um projecto que envolva toda a Europa só poderá conceber-se e realizar-se com bases jurídicas novas e com base numa clarividente visão politica.
Simultaneamente há que atender ao presente.
Os diagnósticos estão feitos.
Há que conferir maior efectividade e eficácia aos instrumentos já existentes, transpondo-os e fazendo-os funcionar, e ultimar instrumentos novos.
Há que garantir uma efectiva implantação da Eurojust e do conceito matriz de coordenação, que a inspira e molda, nos sistemas nacionais.
Há que não desarmar, de vez, os Estados e assegurar uma efectiva acção de coordenação na perseguição penal da criminalidade transnacional, que vai obviamente para além das fronteiras externas da Europa, que gera grande parte dos lucros que alimentam os mercados financeiros que vão controlando os Estados, que corrói as instituições e paralisa o Estado de Direito.
Tudo isto para que os cidadãos possam confiar e beneficiar do espaço de liberdade, segurança e justiça que a Europa se comprometeu a proporcionar-lhes e para que a “luta” contra a criminalidade não se arrisque a constituir, na prática, um conjunto de textos de boas intenções.
Citando Marc Augé, “a extensão dos não lugares (dos espaços) já ultrapassou a reflexão dos que só se perguntam cada vez mais para onde vão porque sabem cada vez menos onde estão”.   
O Dia da Europa é, também ele, um dia para nos perguntarmos onde estamos, para percebermos melhor para onde vamos.

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