domingo, 20 de janeiro de 2013

“A reforma do Estado está a ser feita com grande amadorismo”


ENTREVISTA A JORGE SAMPAIO
Ex-Presidente diz que reforma do Estado tem sido pouco transparente e alerta para a degradação do diálogo mínimo
Almoço no Pabe Ao deixar os seus dois cargos na ONU, o ex-Presidente faz um balanço e diz que a situação política portuguesa é “inenarrável”
Jorge Sampaio “O mínimo de diálogo está a deteriorar-se”

Texto JOSE PEDRO CASTANHEIRA, RICARDO COSTA e RUI CARDOSO Foto RUI OCHÔA

Jorge Sampaio assistiu de perto ao lançamento do Expresso. Tinha escritório no prédio ao lado e reunia com os seus amigos da política do outro lado da rua Duque de Palmela, no snack do Hotel Florida. Com uma longa carreira política, emocionou-se quando, recentemente, foi explicar a nossa Constituição à Tunísia, país que serviu de rastilho às primaveras árabes. A Tunísia quer uma Constituição semipresidencialista e pediu ao ex-Presidente da República para explicar o nosso equilíbrio de poderes.
Um equilíbrio que tão bem conhece, como deputado, dirigente partidário, Presidente e, agora, como observador mais distante mas atento.
- Não deixa de ser irónico estarmos a ‘exportar’ a Constituição quando é tão criticada em Portugal.
- Nós é que temos a mania que a má ou a deficiente governação são culpa da Constituição, o que não é manifestamente o caso.

- A Constituição é usada como bode expiatório?
- Qualquer que seja o conteúdo da Constituição ela tem de consagrar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, quando não o da confiança. Pensar-se que uma revisão constitucional afasta estes princípios é estar-se num mundo não democrático. Até já chegámos a ouvir pessoas dizer que o país é inconstitucional — o que é inimaginável e completamente absurdo! O caso da saúde é patente. A Constituição exige que o SNS seja universal e geral. Qualquer coisa que afete estes dois princípios é inconstitucional. Diz também que é tendencialmente gratuito, de acordo com as possibilidades económicas de cada um — o que significa que há uma panóplia de soluções do ponto de vista do pagamento dos cuidados de saúde. Não podemos culpar a Constituição por todas as nossas incapacidades políticas. Pela minha parte, sempre fui a favor de uma interpretação atual dos textos legais.

- Existe demasiada pressão pública sobre o Tribunal Constitucional?
- Tentativas há, mas só sente a pressão quem é pressionável. Sou um defensor da importância do controlo final da constitucionalidade. Embora, claro, se possa sempre discordar de uma eventual decisão nesse sentido.
- Preocupa-o o facto de não haver entendimento sobre os grandes temas da atualidade?
- Nós estamos a perder, a uma rapidez assustadora, os hábitos de construir e alimentar a coesão nacional e intergeracional que tem estado na base do modelo social. Está a deteriorar-se, de forma preocupante, o mínimo de diálogo político para se chegar a decisões consensuais. O diálogo pressupõe concessões mútuas. Digo frontalmente, com imenso desgosto, que não houve da parte do Governo, nomeadamente do PSD, uma preocupação de incluir o PS numa conversa permanente, não pública, sobre todos os pontos da governação. Passa- -se a vida a ouvir que foi o PS que assinou o memorando, mas o memorando foi assinado pelos três partidos. Esgrimir este argumento, como também pretender que o PS está a amarrado a uma trela, não leva a parte alguma. Até porque há uma coisa dramática: estamos cercados por credores. Esta é a realidade. Ora todos os esforços deveriam convergir para um entendimento sobre como criar condições para nos libertarmos desta tutela.

- Como se ultrapassa isso?
- Com políticas apropriadas, por um lado, e, por outro, com respostas democráticas. Estas últimas exigem diálogo político e concertação social. Ora, os agentes políticos têm de o saber construir. Mas o consenso na concertação está agora em perigo, designadamente com a questão dos 12 dias de indemnização. A semana que passou foi, aliás, paradigmática do rumo errado pelo qual se está a enveredar — não se organiza um debate a sério, conclusivo, da maneira a que assistimos esta semana. É um desastre. Dever-se-ia começar com a apresentação, por parte do Governo, de um livro branco sobre as reformas. E, depois, sim, discuti-lo a todos os níveis… Agora, o que parece ter acontecido é precisamente o contrário. Obviamente, não podemos viver de uma maneira para a qual não temos sustentabilidade. O relatório do FMI contém muitas sugestões que até são interessantes, apesar de haver também dados errados e de uma forte componente ideológica subjacente. Por isso, é necessário suscitar a discussão mas num clima de abertura, de pluralismo e de diálogo inclusivo. Há sempre alternativas em democracia. E a urgência de soluções não pode dispensar estes debates. O que importa é encontrar as melhores soluções, os consensos mais abrangentes. Ora, isso não está organizado.

- Como se pode organizar isso?
- O Governo devia ter começado, há mais de um ano, por pôr em cima da mesa uma série de princípios fundamentais e discuti-los, envolvendo as universidades, os think tanks, chamar a OCDE e o FMI, fazer uma síntese e apresentar um Livro Branco com propostas que poderiam ser alvo de um vasto debate na sociedade, de que resultariam propostas ao Parlamento.

- Estamos a começar do fim.
- Sim, parece que está tudo a ser feito casuisticamente, de uma forma pouco transparente, e com grande amadorismo, ao sabor de medidas avulsas ditadas pela necessidade de fazer cortes. Isto até é dar cabo de uma característica que é vista pelos peritos internacionais e credores como essencial, que é o consenso. Tudo isto é inenarrável!

- António Guterres admitiu responsabilidades pela situação em que o país se encontra. Sente o mesmo?
- Ninguém pode dizer que não tem responsabilidades, maiores ou menores. Fui um agente político responsável, eleito por sufrágio universal, e tenho naturalmente aquilo que é genericamente uma responsabilidade no quadro das competências que, em cada momento, foram as minhas. Nunca me pus nem ponho de fora.

- Não foi essa a posição de Cavaco Silva na entrevista que deu ao Expresso.
- Eu não faço comparações. Tenho a minha visão do exercício dos cargos públicos que sempre segui nas várias funções que desempenhei. Sempre me pautei por um sentido de responsabilidade exigente — fiz o que devia, podia e pensei que era útil, em cada ocasião. Terei tido omissões — certamente que sim, como qualquer pessoa em dez anos. É impossível não pensar que houve erros e que não houve omissões. Deles, a História falará. Neste momento, importa-me, sim, saber o que podemos fazer coletivamente pelo nosso país. Portugal está numa saga extremamente difícil e eu sou dos que querem sair dela pela discussão e pela democracia, que não querem ver postas em causa as bases fundamentais de um processo democrático que tanto custou a construir. Por exemplo, esta ideia de que o objetivo é aparecermos como os bons alunos da Europa… Francamente, não é por aí! Atribuir culpas só aos portugueses parece-me ser excessivo e demasiado violento. Exige-se da Europa que volte a ter uma resposta coletiva e se deixe de separações, de falta de solidariedade, de divisões. A Europa, em vez de reforçar a sua união, corre o perigo de se desagregar.

-Ainda diria hoje que “há mais vida para lá do défice”?
- É que eu não disse essa frase. O que disse é que “há mais vida para lá do orçamento”. Já percebi que ficarei crucificado por uma frase que não disse. E é preciso ver o parágrafo anterior da intervenção em que disse isso, em que falava das contas públicas: isto não se resume ao orçamento, às finanças, existe também a economia, era o que queria dizer. E já agora, há outro ponto que queria mencionar: persiste uma ideia estranha segundo a qual vem aí uma crise política. Mas não é de todo evidente que haja soluções óbvias para essa crise. Seria melhor não acrescentarmos problemas dispensáveis à crise em que vivemos.

- Mário Soares defende que deveria ser formado um novo governo.
- Eu divirjo do meu antecessor nesse ponto. Não se podem formar governos sem apoios partidários. O momento não é para uma crise política. Mas isto também não pode redundar num pretexto para se limitar o debate.

- O esforço deve ser posto na concertação e no diálogo?
- O mais possível. O que eu gostava era de ver alguém a trabalhar como quando se constrói, na Alemanha ou Holanda, um governo de coligação, em que, além de os gabinetes de estudo dos partidos trabalharem permanentemente, há um programa comum discutido durante semanas. Aqui, basta ter um bocado de papel e julga-se que se fez um acordo político. A credibilidade dos cidadãos no sistema político está em declínio vertiginoso. Temos a responsabilidade de parar isso, pela credibilízação do diálogo e do trabalho político. Se só se grita, não vamos a lado nenhum.

- E agora, quais são os seus planos para o futuro?
- Falamos disso em março.
“Candidatos a PR devem avançar cedo”

- Qual era a sua relação com o Expresso quando o jornal saiu, em janeiro de 1973?
- Conhecia há muito Balsemão, por termos sido contemporâneos na Faculdade de Direito. Além disso, havia o fator vizinhança, porque eu tinha o escritório no prédio ao lado. Foi uma lufada de ar fresco e um ato de grande significado, decorrente da aventura que fora a ala liberal.

- Começou logo a colaborar.
- Sim, na campanha eleitoral de 1973, quando convidaram várias pessoas para fazer uma crónica durante aquele mês de liberdade. Foi a colaboração que mais gozo me deu, devo dizer.

- Vinte anos depois, foi no Expresso que revelou a vontade de se candidatar a Belém.
- É verdade. Foi numa entrevista em que disse que “seria estimulante disputar as eleições com Cavaco Silva”… Candidatei-me bastante cedo — coisa que sempre aconselhei aos subsequentes candidatos. Anunciar cedo ajuda a preservar uma dose de liberdade.

“A democracia liberal não é aplicável em todos os sítios da mesma maneira”
- Em que contexto sai dos cargos na ONU, Enviado Especial para a luta contra a tuberculose e Alto Representante para a Aliança das Civilizações?
- Neste tipo de cargos a renovação das lideranças é indispensável. É preciso saber parar e perceber quando se atingiu o momento certo da passagem de testemunho. Foi essa a minha avaliação e pedi ao secretário-geral para me substituir. Como se sabe, inaugurei ambos os cargos. Foi em maio de 2006, quando Kofi Annan me convidou para seu enviado especial para a luta contra a tuberculose. Porquê? Isto prende-se com a Declaração do Milénio que, pela primeira vez na história das Nações Unidas, traduz um consenso sobre objetivos a alcançar que não tinham só a ver com a paz e os direitos humanos, mas também com a necessidade de erradicar a pobreza extrema do mundo. A tuberculose é um bom barómetro: sabia que morrem 4500 pessoas por dia, ou seja, 1,6 milhões por ano? Sabia que as pessoas com VIH-sida são especialmente permeáveis à tuberculose, que mata um quarto destes doentes?

- Isso era novo para si?
- Não, de todo. Na Câmara de Lisboa já tinha lançado o primeiro programa de luta contra a toxicodependência. Como Presidente, fiz da saúde pública como tema de direitos humanos uma das minha prioridades. Este meu reiterado interesse dever ter chamado a atenção de Kofi Annan, o que explica porventura o convite, que aconteceu no momento certo — foi logo a seguir à saída de Belém — e, por isso, de 2006 a 2009 dediquei-me a fundo a esta causa.

- Qual o país que o chocou mais?
- É difícil escolher um, mas África, que foi uma das minhas prioridades, sobretudo em 2006 e 2007. Comecei por Addis Abeba, em setembro de 2006, numa reunião com todos os ministros da Saúde do continente africano e aproveitei para visitar sanatórios com situações impressionantes. Nas aldeias africanas vi coisas chocantes, sim, mas também gente extraordinária e dedicada, a trabalhar em condições de extrema dificuldade. 2008 foi um ponto alto das minhas atividades pois consegui finalmente promover o primeiro Fórum Global das NU dedicado à coinfeção HIV/TB. Esta coinfeção é alvo de um grande paradoxo: que sentido tem mantermos vivas pessoas apesar de terem uma doença incurável para depois elas acabarem por morrer de tuberculose, que é uma doença curável?

- Há algum país da CPLP entre os com taxas de tuberculose mais elevadas?
- Sim. A situação pior é em Moçambique. E há o Brasil, fui uma vez à favela da Rocinha… Na China, a situação da tuberculose é igualmente grave. Estive lá com Bill Gates para lançar um programa focado na tuberculose multirresistente, onde esteve o vice-primeiro-ministro chinês da altura.

- A China admite-o publicamente?
- O peso do estigma é enorme. O primeiro passo para a solução da luta contra a tuberculose começa no seu reconhecimento público. Hoje em dia as multirresistências são uma verdadeira ameaça de saúde pública. Sem um bom serviço de saúde da tuberculose normal facilmente se evolui para as multirresistências, daí a importância crucial de a tuberculose ser identificada a tempo e tratada até ao fim. Investir na tuberculose é mais barato do que arcar com as suas consequências no plano sociai e económico. A tuberculose pode reduzir o PIB de um país gravemente afetado em 4 a 7%. Estes temas são tão importantes para a paz como o combate à pobreza e à exclusão. O mandato era de cinco anos e estive sete em funções. Era altura de sair.

- Junta a esta saída, a da Aliança das Civilizações…
- Sim, termino o meu mandato no fim do próximo mês de fevereiro. Iniciei-o em maio de 2007, a convite de Ban Ki-moon, para seu Alto Representante para a Aliança das Civilizações! “Vai ter de viajar muito”, acrescentou…

- Havia um relatório sobre a Aliança?
- Sim, nessa altura, a Aliança era apenas um relatório de cerca de cinquenta páginas… Tudo começara em 2004, após os atentados de Madrid. Zapatero tinha lançado a ideia de que era preciso reativar o diálogo para reconstruir pontes entre culturas e restaurar a confiança num mundo extremamente polarizado. Durante estes anos transformei esse relatório numa iniciativa real, a funcionar plenamente numa escala mundial. Começou com um pequeno grupo de apoio de cerca de 25 países. Hoje congrega cerca de 115 Estados-membros e uma vintena de organizações internacionais e tem uma extensa rede de ONG e outras organizações da sociedade civil. A Aliança é a plataforma de referência das NU de diálogo e cooperação intercultural e um ator internacional que procura promover a boa governação e fomentar o diálogo e entendimentos entre as sociedades.

- A situação internacional melhorou? Temos uma guerra a começar no Mali com islamitas, franceses…
- A Aliança nunca se propôs tratar daquilo que é tipicamente político e releva basicamente do Conselho de Segurança das NU. O seu domínio de atuação é outro — como iniciativa de soft power a Aliança trabalha num plano diferente. Veja-se por exemplo o conflito israelo-palestiniano, que dura há 60 anos. Toda a gente sabe os passos essenciais para o resolver. Mas, mesmo que haja um acordo formal, assinado no foro apropriado, a seguir há a vida real dos palestinianos e dos israelitas. Há que preparar as pessoas para esta vida em comum, caso contrário persistirão sempre muros e barreiras. O diálogo não se decreta, e não há entendimento político duradouro sem um mínimo de compreensão pessoal. Devo dizer, a este respeito, que Portugal tem muito para mostrar no domínio da capacidade de integração.

- Viu com satisfação o voto de Portugal na ONU sobre a Palestina?
- Só posso responder a título pessoal, mas acho que foi correto, embora tardio. Sou favorável à constituição de dois Estados, ou seja, da construção de um Estado Palestiniano independente, viável e soberano, vivendo lado a lado, em paz e segurança, com o Estado de Israel. Mas as condições efetivas para a realização desta solução estão a ficar ameaçadas em definitivo.

- Europeu como é, alguma vez se sentiu como pertencente a um continente em perda?
- Poderia responder citando Eduardo Lourenço: “A nossa velha Europa conhece neste momento uma crise de imagem e de estatuto histórico de um novo género e provavelmente sem saída, como se estivéssemos no fim da linha”.

- A primavera árabe mudou alguma coisa?
- É evidente que sim. Vamos ter de nos habituar à emergência de novas conceções de democracia — e, note-se, democratização não vai significar necessariamente ocidentalização. Trata-se de aprender a dialogar e a conviver com um modelo de sociedade que vai talvez recriar um modelo de democracia inspirado no Islão político. A ideia de que o modelo da democracia liberal, capitalismo industrial e secularismo nacional é aplicável em todos os sítios e da mesma maneira é um erro.
Expresso, 19 Janeiro 2013

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