O drama actual do regime democrático reside precisamente aí: na denegação política da sua dimensão jurídica
António Cluny
1. Por causa da crise que vem sacudindo a Itália, os seus intelectuais não cessaram ainda de nos brindar com cativantes estudos sobre a importância do Estado de direito e a dimensão jurídica da democracia.
Provavelmente por Roma ter sido o berço da "ciência jurídica" que rege a nossa civilização, ou por, mais recentemente, terem os italianos sofrido os desmandos de lierlusconi, muitos filósofos do direito, constitucionalistas ou politicólogos italianos - Cassese, Ferrajoli, Pizorusso, Rodotà, Flores D'Arcais - alcançam hoje, melhor do que outros, o significado da desregulação e da "selva" que a "ideologia económica" actual comporta.
Mesmo Agamben, que procura reflectir sobre os problemas da sociedade actual para além das suas questões mais imediatas, acaba também por fundar parte importante do seu pensamento em conceitos político-jurídicos tão polémicos como, no caso, são os de Carl Schmitt.
2. A democracia que, quotidianamente, vemos ser destruída às mãos de interesses que já nada têm a ver com a vida e os anseios da maioria dos homens, está, efectivamente, a ser desmantelada a partir da sua base jurídico-constitucional.
Tal corrosão conta, porém, com a ajuda prestimosa de "sumidades" da "ideologia económica" dominante, que, para nosso infortúnio, se revelam, não raramente, de uma quase ofensiva incultura sobre tudo que exceda a dimensão - demasiadas vezes também falhada - da sua folha de cálculo.
O drama actual do regime democrático reside precisamente aí: na denegação política da sua dimensão jurídica.
3. Muito do que se tem dito sobre o recente acórdão do Tribunal Constitucional - e poucas têm sido as verdadeiras análises jurídicas do mesmo procededa alienação das bases político-jurídicas da democracia, conceito que, para muitos, se resume, apenas e já, a um sinónimo de "mercado livre".
A economia não pode, contudo, continuar, muito mais tempo, a progredir fundada num processo autorreferenciado, que, no essencial, se desenvolve já à revelia dos problemas e anseios dos povos.
Ao longo dos tempos, a humanidade procurou sempre construir e sedimentar processos normativos de relacionamento e de organização social que, apesar das contradições que em cada momento manifestavam, visavam, em última análise, o bem-estar geral e a paz.
Tais processos estabeleceram princípios e normas que, por utópicos que fossem, aspiraram, na maioria dos casos, a permitir uma maior justiça da vida em sociedade e - recorde-se - o próprio desenvolvimento da economia.
Romper a base de tais pactos normativos, que com tantas dificuldades, sacrifícios e dor, a humanidade foi sendo, tenazmente, capaz de construir, pode conduzir, não à "libertação" do processo económico dos "condicionamentos" que o direito lhe criou, mas à implosão do acquis civilizacional em que, sem dúvida, uma governação subordinada à constituição e às leis se traduziu.
Ao contrário do que dizem os titulares dos interesses económicos e do que os seus "comissários ideológicos" procuram catedraticamente ensinar-nos: não, sem um objectivo de justiça, os homens não aguentam tudo.
Construir já uma alternativa realista às exigências antidemocráticas e anti-humanistas desses interesses, projectar uma ideia mobilizadora e largamente inteligível que se sustente nos civilizados princípios jurídicos e politico-constitucionais já alcançados, é a única forma de, nas actuais circunstâncias, impedir uma catástrofe de dimensões inimaginadas.
Jurista e presidente da MEDEL
Escreve à terça-feira
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