Texto LUISA
MEIRELES
Ao
chumbar umas medidas e ao deixar passar outras, a decisão do TC abriu a
discussão: pode o Governo mudar pensões? Despedir funcionários públicos?
O
Expresso analisou a sentença e falou com especialistas. Aqui ficam as
principais pistas que o acórdão mais importante do ano nos deixa
É
polémico? É. E inovador? Também. Surpreendente? Oh, sim! Sólido e fundamentado?
Sem dúvida. Mais do que o do ano passado? Pois. Mas não é linear, longe disso,
tem altos e baixos, como dizia um catedrático.
Não
há duas opiniões iguais em relação ao acórdão sobre o Orçamento do Estado de
2013 que os juizes do Tribunal Constitucional deram a conhecer na semana
passada. Há quem ache, como Pedro Lomba, que ele invade o terreno da política
orçamental, uma ingerência como nenhum outro acórdão jamais tentou. E quem
considere que não a teve suficientemente em conta, nem a situação de emergência
em que o país se encontra, como referiu Marcelo Rebelo de Sousa.
Não
o fez, dizem alguns, pelo menos para chegar às conclusões a que o acórdão
chegou: das nove normas em análise, quatro foram declaradas inconstitucionais,
e cinco conformes à lei suprema. Traduzindo em números, foram, segundo o
Governo, 1326 milhões de euros, num orçamento de 78 mil milhões.
Ou
seja, 1,7% da despesa, 0,8% do PIB. É muito? Pouco? Os números falam por si.
A
oposição canta vitória, mas em boa verdade ela não lhe foi concedida: “Das nove
normas sobre as quais pediu a inconstitucionalidade, o Tribunal concedeu-lhe
3,5″, dizia ao Expresso o constitucionalista Paulo Otero. E quanto ao Governo,
que dramatizou ao máximo o suposto estreitamento do seu caminho por efeito das
medidas do TC, em termos quantitativos, até ganhou por 6 a 3, arrisca o mesmo
professor.
Do
valor total das medidas de austeridade em causa no OE (5338 mil milhões de
euros), apenas 25% foram rejeitadas. Se o corte dos subsídios chumbou, passou o
grosso das receitas, ou seja, a alteração dos escalões do IRS, a sobretaxa e a
própria contribuição extraordinária de solidariedade (CES), esta última a
grande surpresa do acórdão, a norma que todos davam como inconstitucional e não
foi.
MAIORIAS
DO SIM E DO NÃO
A
dramatização teve óbvias razões políticas e permite várias leituras. Mas a que
por ventura não se poderá fazer é a de que os juizes votaram segundo as opções
dos partidos que os indicaram para o lugar. O núcleo que vota as
inconstitucionalidades tem juizes do PS, do PSD e da CDS, numa conjugação
maioritária que ainda se alarga em relação às normas declaradas conformes à
Constituição.
As
maiorias foram sempre confortáveis: 8-5 para três das normas declaradas
inconstitucionais (da suspensão do subsídio de férias dos funcionários públicos
e pensionistas), 11-2 para a quarta (a contribuição dos beneficiários dos
subsídios do desemprego e doença).
Quanto
à constitucionalidade, as maiorias foram ainda maiores: 8-5 (a CES), 10-3
(redução das remunerações pagas por verbas públicas), unanimidade duas vezes
(pagamento de trabalho extraordinário e sobretaxa) e os 13 também, embora
alguns só parcialmente quanto à redução dos escalões do IRS. “A autonomia do
coletivo funcionou”, dizia um ex-juiz ao Expresso.
IDEIAS
POLÉMICAS
Passos
Coelho acusou o TC de falta de solidariedade, brandindo uma ameaça externa que
não se concretizou (a possibilidade de pôr em perigo a renegociação dos prazos
da dívida). Não perdeu porém tempo em apontar qual o caminho que vai seguir
internamente: não a mais impostos, sim a mais cortes nas despesas sociais. As
medidas deverão ser anunciadas nas próximas semanas e comunicadas à troika.
O
anúncio foi suficiente para pôr a oposição a reclamar que o acórdão foi apenas
um pretexto para pôr em marcha uma “agenda ideológica” programada há muito e,
em alguns casos, com a conivência europeia.
O
PS, pela voz do deputado Vitalino Canas, um dos subscritores do pedido para o
TC, afirmou que “o Governo tem de ter cuidado com as alterações ao orçamento e
a distribuição dos sacrifícios”, porque o seu partido está na disposição de
usar todos os poderes de que dispõe em matéria legal.
Certo
é que, da análise do acórdão, por polémicas ou contraditórias que sejam
consideradas as decisões dos juizes, elas fecham alguns caminhos, mas também
abrem a porta a outras soluções. O TC fez um claro juízo de censura ao Governo
(e à Assembleia) por não ter ponderado outras vias, mas não bloqueou todas as
saídas.
DESPEDIMENTOS
E PENSÕES
Os
despedimentos na função pública são uma delas, como efeito perverso da
aplicação do princípio da igualdade em relação ao sector privado. Se o TC diz
que não se pode cortar um subsídio aos funcionários por causa desse princípio,
não veda a cessação do vínculo na administração pública em nome do mesmo
princípio, salientava Paulo Otero.
Por
outro lado, não parece também ficar excluída a possibilidade de reformar o
sistema de pensões. “Criou-se espaço para a reforma do sistema que envolva
cortes de pensões já atribuídas”, disse ao Expresso o constitucionalista Carlos
Blanco de Morais. E mais: ao “validar” a CES como um “tributo parafiscal” — ao
invés de um imposto, como argumentaram todos os pedidos de verificação da
constitucionalidade — “abre caminho para uma redução do valor das pensões
expectáveis”.
“O
que está constitucionalmente garantido é o direito à pensão, não o direito a um
certo montante, a título de pensão”, escreve-se no acórdão, depois de afirmar
que “o reconhecimento do direito à pensão e a tutela específica de que ele goza
não afasta à partida a redução do montante concreto da pensão”.
O
ponto sobre a contribuição extraordinária de solidariedade é um dos mais controvertidos.
Poucos são os que duvidam que, de alguma maneira, a CES, tal como um
bumerangue, ainda vai voltar a ser analisada no Palácio Ratton.
CONCEITOS-CHAVES
Do
ponto de vista estritamente jurídico, são três conceitos-chaves que definem o
acórdão: ò que diz respeito ao princípio da igualdade entre funcionários
públicos e privados, o da recusa da excecionalidade e, finalmente, o relativo
ao conceito do imposto.
De
facto, ao debruçar-se sobre o princípio da igualdade relativamente ao pedido de
inconstitucionalidade do corte do subsídio de férias dos funcionários públicos,
o TC afirma, preto no branco que, na distinção entre um trabalhador público ou
privado, não conta essa condição, mas sim a capacidade de cada um cumprir os
seus encargos fiscais.
Não
é por acaso que, para chegar à conclusão de que este princípio está “ferido” em
relação aos funcionários públicos, o tribunal elenca todas as medidas gravosas
que foram sendo aplicadas sobre os seus rendimentos, o que não aconteceu com os
trabalhadores do sector privado.
Quanto
ao argumento da excecionalidade da situação económica, desta vez os juizes
ergueram uma barreira. Pelo terceiro ano consecutivo, os orçamentos submetidos
aos juizes do Palácio Ratton invocam esse mesmo pretexto e a necessidade
urgente de corrigir as contas. Numa óbvia censura ao Governo, o Tribunal diz
que já chega: “O decurso do tempo implica um acréscimo de exigência ao
legislador no sentido de encontrar alternativas”. Em suma, a exceção não pode
ser a normalidade.
O
terceiro conceito foi ainda mais inesperado. Debruçando-se sobre a polémica
CES, que impende sobre as pensões acima de 1350 euros, o acórdão estatui,
citando Luís Vasconcelos Abreu: “O fator decisivo não é aquilo que o imposto
retira ao contribuinte, mas o que deixa ficar”. Numa penada, e entre outros
argumentos, a norma invocada pelos quatro pedidos de inconstitucionalidade foi
declarada conforme à Constituição.
De
facto, os juizes negam-lhe o carácter confiscatório, mas não o rejeitam de
todo, ao considerarem que ele pode aplicar-se em casos concretos. “Saber se um
imposto tem efeitos confiscatórios não depende apenas dos montantes das
respetivas taxas (…) mas tem de aferir-se desses efeitos em relação a
determinado contribuinte em concreto”. Esta tomada de posição vai levar a que,
segundo os constitucionalistas, a CES volte a entrar no TC pela porta da
fiscalização concreta, isto é, que analisa casos individuais. E, aí, a decisão
do tribunal pode bem ser diferente.
No
sentido oposto, o tribunal estabelece também um novo paradigma: a de que o
mínimo de sobrevivência passa a ser o salário mínimo. Debruçando-se sobre a
questão das contribuições dos subsídios de desemprego e doença, o TC repesca o
principio da dignidade humana.
“Os
limites mínimos que o legislador fixa para essas prestações compensatórias,
ainda que não tenham por referência os critérios de fixação do salário mínimo,
não deixam de constituir a expressão de um mínimo de existência socialmente
adequado”. Entre ricos e pobres, o tribunal fez uma distinção.
Expresso,
13 Abril 2013
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