Público - 13/04/2013 -
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1.
Em 11 de abril de 1963, há cinquenta anos, dava o Papa João XXIII a encíclica
Pacem in Terris.
A encíclica - dirigida, pela
primeira vez entre todas as encíclicas, não só aos fiéis mas também a todas as
pessoas de boa vontade - abria com a afirmação solene e clara de que "paz
na Terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode
estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por
Deus".
Mas essa ordem era uma ordem
moral, jurídica e política, assente no "princípio de que cada ser humano é
pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre" e dotada
de "direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis".
"E, se contemplarmos a dignidade da pessoa humana à luz das verdades
reveladas, não poderemos deixar de tê-la em estima incomparavelmente
maior".
A partir daí, o texto
desenvolvia se numa linha ascendente, considerando a ordem entre os seres
humanos, as relações entre os seres humanos no interior das nações, as relações
entre as comunidades políticas e as relações dos indivíduos e das comunidades
políticas com a comunidade internacional. E a paz que se procurava nesses
âmbitos progressivamente alargados havia de fundar se (dizia se quase no fim)
na verdade, constituir se segundo a justiça, alimentar se e consumar se na
caridade, realizar-se sob os auspícios da liberdade.
2. Para quem vivia então em
Portugal sob uma ditadura, era essa proclamação da dignidade e da liberdade que
mais impressionava - uma proclamação logo traduzida num enunciado de direitos
fundamentais, entre os quais o direito de prestar culto a Deus, conforme o
imperativo da sua consciência, o direito a um digno padrão de vida, a liberdade
de manifestação do pensamento, o direito à informação verídica sobre os
acontecimentos públicos, o direito ao trabalho e a liberdade de exercer
atividade económica com sentido de responsabilidade, o direito a uma
remuneração do trabalho consoante os preceitos da justiça, os direitos de
reunião e de associação, o direito de migração, o direito de participar
ativamente na vida pública.
Aos direitos correspondiam
deveres, em necessária reciprocidade. "Pois, quando numa pessoa surge a
consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do
dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos como
expressão da sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais
direitos".
Ressaltava bem o paralelo
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1948, e o contraste com a prática do regime de
Salazar.
3. Não menos significativas
eram algumas frases que apareciam mais adiante:
"Pelo facto de a
autoridade provir de Deus, de nenhum modo se conclui que os homens não tenham a
faculdade de eleger os próprios governantes, de determinar a forma de governo,
métodos e alçada dos poderes públicos. Segue se daí que a doutrina por Nós
exposta é compatível com qualquer regime genuinamente democrático".
"... A função
primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da
pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres. Por isso mesmo, se
a autoridade não reconhecer os direitos das pessoas ou os violar, não só
perderá ela a sua razão de ser como também as suas injunções perderão a força
de obrigar".
"Julgamos ser conforme
à natureza humana a constituição da sociedade na linha de uma conveniente
divisão de poder, que corresponda às três principais funções da autoridade
pública".
A encíclica fazia frequentes
vezes referência aos "sinais dos tempos" e, entre eles, assinalava a
gradual ascensão económico- social das classes trabalhadoras, o ingresso da
mulher na vida pública e o acesso de todos os povos à independência, pelo que
"dentro em breve já não existirão povos dominadores e povos dominados".
4. Expressões inteiramente
novas eram, por último, as utilizadas acerca das relações entre católicos e não
católicos no campo económico, social, político:
"Não se deverá jamais
confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado
conhecimento em matéria religiosa ou moral. O homem que erra não deixa de ser
uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano".
"Além disso, cumpre não
identificar falsas ideias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do
universo e do homem com movimentos históricos de finalidade económica, social,
cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas ideias
filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquilo
que é, mas o movimento, mergulhado como está em situações históricas em
contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é
suscetível de alterações profundas. Aliás, quem ousará negar que nesses
movimentos, na medida em que concordem com as normas da reta razão e
interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos dignos de
aprovação?".
5. Foi grande o impacto da
encíclica em todo o mundo e, como não podia deixar de ser, também em Portugal.
Muitas consciências foram
despertadas. Constituíram-se grupos de estudo e reflexão. Houve sessões de
esclarecimento e debate, especialmente nos meios universitários (recordo uma, a
que fui, no auditório n.º 1 da Faculdade de Letras de Lisboa, completamente
cheio, com o padre Manuel Antunes e com estudantes intervindo com vivacidade e
entusiasmo). Viria a ser formada a cooperativa Pragma (depois encerrada pela
PIDE).
A Oposição Católica, que se
vinha difundindo desde a campanha eleitoral de 1958 do general Humberto Delgado
e da carta do bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, sentiu-se reconfortada.
Apesar de todas as dificuldades, aumentou a esperança de que o nosso país
pudesse ter uma ordem política mais próxima dos princípios da encíclica e da
Doutrina Social da Igreja, mais respeitadora dos direitos e liberdades
fundamentais, sem censura nem polícia política, nem presos políticos, com
pluralismo e com eleições livres e honestas, com mais justiça e mais
solidariedade.
Porém, o regime de Salazar
não escutou esses ensinamentos nem essas vozes, e a esperança esmoreceu. Seria
preciso viver ainda mais de uma década até que pudesse renascer.
Constitucionalista
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