Público
- 20/03/2013 - 00:00
É intolerável o que algumas
pessoas ligadas ao poder judicial em Portugal vêm fazendo com a divulgação
pública de informação em segredo de justiça ou instrução processual. Situa-se
nesse quadro a notícia, que não é inédita, segundo a qual o procurador-geral da
República (PGR) de Angola estaria a ser investigado devido à transferência de
dinheiro para uma conta bancária que tem em Portugal, o que vem não apenas
manchar a imagem e a reputação das autoridades angolanas, como do país soberano
que é Angola.
Quando ouvi a notícia, pensei que
o PGR angolano estaria a ser insensato, pois deveria ter transferido vários
milhões de dólares para Portugal, sem justificar a origem de tanto dinheiro.
Porém, fiquei boquiaberto quando li que se trata do equivalente a 70 mil euros
- que é uma quantia irrisória, que qualquer funcionário público de escalão
superior (seja em Angola, seja em Portugal) pode dispor ao fim de várias
décadas de trabalho. Porquê então divulgar uma notícia destas?
A primeira questão a referir tem a
ver com a investigação em si. Ninguém tem nada contra a investigação civil ou
criminal, desde que ela se faça devidamente, nos termos da lei, de forma
objectiva e sem perseguições de qualquer natureza. E não pode haver condenações
em praça pública, sem julgamento. Pois no caso que envolve o PGR angolano,
houve condenação premeditada em praça pública, sem julgamento e com nítido
prejuízo do seu bom-nome. Houve até menção à função que desempenha, quando a
transferência foi feita pelo cidadão e não pelo procurador.
Em segundo lugar, a quantia
envolvida na transferência é de 90 mil dólares. Estamos a falar de uma pessoa
que é funcionário superior do Estado angolano há já algumas décadas. Supondo
que um técnico superior angolano consiga poupar em média 500 dólares por mês,
chegará aos 90 mil dólares ao fim de 15 anos. E se, sendo procurador, poupar
mil dólares por mês, isso pode acontecer antes de terminado o 8.º ano.
Portanto, neste caso, para justificar o montante transferido para Lisboa
bastaria ao PGR angolano apresentar uma declaração de salários. Ainda que fosse
o dobro do valor em causa, bastaria a declaração de salários (sem haver
necessidade de fazer prova de outros rendimentos, que até se sabe haver).
Se a dúvida disser respeito à
origem da transferência, então será necessário que os bancos informem os seus
clientes dos locais a partir dos quais a lei determina não ser possível
transferir dinheiro.
Há um terceiro aspecto a referir,
que tem a ver com alguma especificidade de Angola - melhor, do mercado angolano,
onde o informal tem grande peso. Se o cidadão João Maria de Sousa tiver um
apartamento que decida trespassar, pode embolsar num ápice quaisquer 100 mil ou
200 mil dólares. Estamos a falar em trespasse e não em venda, o que significa
que isso não envolve uma declaração de compra e venda, nem sequer chega ao
conhecimento do Estado.
Sim, é isso que ocorre em Angola:
a pessoa que trespassou o apartamento onde vivo não deu conta dessa transacção
ao Estado e não pagou qualquer imposto. Esta é a realidade do mercado angolano.
Se me perguntarem se concordo com isso, a resposta terá de ser negativa, pois
tenho dito e escrito que o Estado angolano deve ir absorvendo e cobrando
impostos em relação a boa parte das transacções informais. Mas a verdade é que
isso ainda não ocorre.
Poder-se-á então perguntar onde
andam os africanistas portugueses, que não chamam à atenção para
"detalhes" como este. O que se passa é que boa parte dos
autoproclamados africanistas não conhece sequer a África urbana, limitando-se a
frequentar alguns bairros urbanos das grandes cidades e a reproduzir os relatos
que ouvem de pessoas que integram as elites. Aliás, vê-se nos trabalhos dos
africanistas desse tipo (sobretudo os mais velhos, daqueles que hostilizam os
verdadeiramente conhecedores de África, e os mais jovens, que pretendem
inverter o quadro) que não citam sequer autores africanos - ou por não
conhecerem os seus escritos, ou simplesmente por continuarem a abordar África
com olhar eurocentrista, encarando os estudos africanos como extensão dos
estudos coloniais.
A concluir, é preciso dizer que
temos de um lado o Governo português a tentar a todo o custo atrair
investimento e (do outro lado) algumas autoridades judiciais que parecem remar
em sentido contrário. Esquecem-se essas autoridades da importância que tem o
investimento de Angola face à situação económica e social em que Portugal se
encontra. Esquecem-se também que há vozes (por sinal, não a minha), dentro e
fora de Angola, contrárias à opção das autoridades angolanas, de apoio a Portugal.
E esquecem-se, finalmente, que nas relações entre Estados vigora o princípio da
reciprocidade...
Sociólogo angolano
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