domingo, 21 de outubro de 2012

Sentir o Direito: O mito da culpa

Um discurso corrente entre nós, mas originário da Europa, associa o sofrimento e o empobrecimento de Portugal a uma culpa coletiva. Sofremos e empobrecemos, por sermos culpados. Este discurso está implícito na ideia de punição e é conhecido no Direito Penal: o sofrimento da pena justifica-se porque se é culpado. Porém, tal ideia assenta num mito.
                                                                                                 
Paul Ricoeur mostrou que a associação que se estabelece entre o sofrimento e a culpa é mítica e inverte os termos da relação. Onde há sofrimento tem de haver culpa, como se a culpa pudesse ser a causa do sofrimento. Ora, na realidade, é o sofrimento que pressupõe a culpa, é ele que a suscita como explicação. A culpa não antecede o mal do crime, sucede-lhe.
A triste situação portuguesa tem origem no sistema económico europeu e na divisão de trabalho internacional. Não se trata de um problema de culpa, mas de irracionalidade económica. O discurso da culpa como causa não é racional, é mítico e destrói o respeito pela vontade de superação dos povos de países que enfrentam dificuldades em financiar-se.
A pena só pressupõe com utilidade a ideia de culpa, quando esta serve para evitar o sofrimento futuro, promovendo a reparação do mal do crime e o afastamento da pessoa do agente relativamente a esse mal. É este o sentido da mensagem do artigo 40º do Código Penal, quando consagra como finalidades das penas a defesa de bens jurídicos e a reintegração social.
A insistência na ideia de culpa como causa do crime não produz nada de positivo. A culpa só pode ser vivida depois do crime e resolve-se pelo distanciamento e pela rejeição desse crime. A restrição de direitos que atinge o povo português parece-se com uma pena retributiva que não serve para encontrar um caminho de libertação do sofrimento e da falta de esperança.
Como notou François Hollande, a sociedade portuguesa parece, na verdade, estar a cumprir uma pena retributiva. É necessário que se liberte, definitivamente, da associação dos problemas económicos a uma ideia de culpa e abandone a "economia do castigo", para se converter numa economia de conjunção de esforços, de recuperação e de reintegração.
A colónia penal em que nos querem colocar está em colapso profundo. A nossa culpa, tal como a culpa penal, carrega um mito que inverte as raízes do mal. A culpa que nos querem atribuir não é mais do que um desfasamento entre as metas culturais europeias e as condições institucionais de países enfraquecidos pela própria política europeia. O resto é o mito.
Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal
Correio da Manhã, 21-102012

Sem comentários: