António Cluny, Presidente da MEDEL - ionline (14-08-2012)
Advogar, sem mais, os dias de ontem e de anteontem implica, por isso, justificar os dias piores que hão-de vir
1. De férias, tenho lido, agora mais distendido, artigos diversos sobre a «crise». Noite fora, tenho conseguido, também, ver filmes que antes me escaparam.
Dos artigos, retive um de Mário Vieira de Carvalho e vários de Rui Tavares. Dos filmes, destaco «A Queda», de Oliver Hirschbiegel.
O artigo de Vieira de Carvalho situa na história recente as razões do nascimento e da actual decadência do chamado «modelo social europeu». Rui Tavares indaga, incessantemente, a possibilidade de construir uma alternativa eficiente que impeça a sua destruição.
«A Queda», por outro lado, documenta como o fanatismo e a cobardia de uma liderança conduziram um povo – o alemão – a participar passiva e disciplinadamente na destruição total do seu país.
Que têm eles em comum? Aparentemente, nada.
Contudo, permitiram-me reequacionar algumas ideias sobre a «crise» e as suas alternativas.
2. Muitas das críticas às medidas anticrise parecem reconduzir-se tão-só a uma ideia: «se o dia de hoje é mau, queremos o de ontem já!».
Mas não era isso que se dizia também ontem e anteontem, lembram-se?
Tais críticas esquecem o essencial: que nem todos viveram bem ontem e nem todos se preparam para viver mal amanhã.
Mesmo que factuais, por repetitivas, acabam, assim – como no Pedro e o Lobo –, por iludir e anestesiar as reacções dos que mais sofrem tais medidas.
Ao não questionar como se chegou ao dia de anteontem, de ontem, de hoje e, inevitavelmente, ao ainda mais tenebroso dia de amanhã, acabam por legitimar, também, as opções tomadas e as que, no mesmo sentido, se lhe seguirão.
Advogar, sem mais, os dias de ontem e de anteontem implica, por isso, justificar os dias piores que hão-de vir.
A crítica do dia de hoje precisa portanto de, sem prescindir do que de bom foi antes alcançado, renunciar ao elogio inconsequente dos dias de ontem e à promessa enganadora de uma sua repetição feliz.
Se não procurar indagar as causas da revelada «inviabilidade» do, agora proclamadamente problemático, «modelo social europeu», tal crítica apenas conseguirá contribuir para justificar a política dos eternos «sacrifícios»: os que foram e serão impostos para, sempre em seu nome, o salvar, liquidando-o de vez.
Para os que com isso se não conformam será, portanto, a hora – quiçá incómoda – de procurar construir, já hoje, uma sociedade mais justa e sustentada.
Sim, procurar a inspiração para dias diferentes, porventura nem sempre fáceis para muitos mas, por certo, mais justos e promissores para a grande maioria.
Reduzir a injustiça do dia de hoje e projectar um amanhã mais seguro e equitativo para todos, um amanhã que tem, provavelmente por isso, de impor outros, mas distintos «sacrifícios» e «sacrificados», poderá ser o caminho para uma verdadeira «alternativa».
Esses outros «sacrifícios» terão, porém, de contar com algumas vantagens que os credibilizem: serem respeitadores da segurança da ordem jurídica constitucional, serem explicáveis como socialmente justificados e proporcionais, assegurarem confiança pública e serem, assim, auspiciosos e mobilizadores.
Não, não se equaciona nada de radical que a maioria dos portugueses tenha rejeitado; apenas se insiste, para evitar a ruptura da coesão nacional e assegurar a paz e progresso social, no retorno, sem disfarces nem entorses, à genuinidade dos valores, princípios e programa humanistas da Constituição.
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