terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A presunção de inocência


Princípio cardinal do processo penal, curioso é que o mesmo não apareça plasmado no respectivo código, o Código de Processo Penal, onde igualmente se procurará em vão o princípio associado que vimos de referir, in dubio pro reo.
- Ponhamos que a presunção de inocência é um princípio jurídico, vigente em processo penal, mas formulado em sede constitucional, nestes termos que dizem tudo: Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.º-2, Const.)
Ao que diz quem sabe, o princípio em causa remonta à Revolução Francesa e à célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), recebendo-o sucessivamente vários documentos importantes do direito internacional, primeiro a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 11.º), de 1948, depois a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6.º-2), de 1950, e por último o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 14.º-2), de 1976.
O que o princípio significa é que o arguido não precisa de provar a sua inocência (ela é presumida à partida), além de não ter sequer que fazer prova em tal sentido, muito menos pela sua palavra (o direito de defesa do arguido abrange o direito de se calar, de não responder a perguntas, de guardar silêncio sobre a matéria do facto). E significa ainda que, em caso de dúvida, o arguido deve ser absolvido, por outras palavras, a dúvida sobre a matéria da acusação ou da suspeita não pode virar-se contra o arguido, não pode prejudicá-lo, em vez de o favorecer (in dubio pro reo, como se costuma dizer).
Princípio cardinal do processo penal, curioso é que o mesmo não apareça plasmado no respectivo código, o Código de Processo Penal, onde igualmente se procurará em vão o princípio associado que vimos de referir, in dubio pro reo. Ora, se está bem que o preveja a Constituição, como direito básico do cidadão, compreende-se mal por isso mesmo que a lei de processo o deixe de remissa no catálogo dos direitos do arguido, peça essencial da estrutura e da finalidade do processo penal. Ainda que o facto, como é evidente, não bula com a força imperativa do princípio, não menos estrito e cogente pela circunstância de só a Constituição o referir expressamente.
- Porque trago o assunto ao palco da crónica, ao canto (esquerdo) da página do jornal (do centro)? Porque me parece importante, por um lado, matizar um pouco o alcance do princípio, compreendê-lo como tal – como princípio, não como regra – isto é, como afirmação de uma ideia genérica, que não exclui por isso mesmo algumas ideias ou soluções de especialidade, mesmo de sentido contrário. Por outro lado, gostaria de chamar a atenção para os perigos de confusão advenientes de uma transposição mecânica do princípio, do estrito campo do processo jurídico para o terreno mais vasto das relações sociais, dos juízos da comunidade, dos fastos da vida social e da política.
Vejamos, a presunção de inocência vale no processo, mas só aí, e ainda aí com importantes limitações, desde logo as que decorrem da previsão legal de medidas de coacção (arts. 196.º segs.), de sujeição do arguido (apesar de presumido inocente, lá está!) a termo de identidade e residência, a caução, a apresentação periódica, a suspensão de profissão, actividade ou direitos, a proibição (ou imposição) de condutas, a confinamento domiciliário, ou mesmo a prisão preventiva, tudo isto conforme os casos e em determinados termos que aqui agora não interessam. Repare-se, o arguido é tido por inocente enquanto decorre o processo judicial, mas isso não impede que nesse mesmo processo lhe sejam aplicadas uma ou outra daquelas medidas, desde a mais leve até à mais lesiva, do termo de identidade até à prisão preventiva. Cá está, o alcance do princípio é restringido por forças destas normas de sentido contrário, significando a presunção de inocência, essencialmente, como se disse, a inexistência de qualquer ónus do arguido de provar a sua inocência.
Insista-se, contudo: a presunção vale no processo, mas não vale fora dele, ao contrário do que supõe, do que julga, ou do que pretende uma imprensa ignara – para não falar dos outros meios, a rádio e sobretudo a televisão – especialmente quando estão na berlinda conhecidos figurões da vida política ou do mundo dos negócios. Os meios incompetentes, ou jornalistas impreparados, enfatizam então a presunção de inocência a despropósito, ao noticiarem a prisão ou qualquer diligência relativa a tal ou tal personagem do palco mediático. Como quem diz: atenção, este senhor vai preso, mas ele é inocente de acordo com a presunção da lei. E o povo que recebe a mensagem, a pensar, quando tal: coitado, lá está um inocente, a ser perseguido pelas autoridades...
Desgraçadamente, assim se anula a censura informal da sociedade e o desvalor associado à existência do processo judicial, assistindo-se contraditoriamente, por força da ignorância dos meios de comunicação, como que a uma legitimação do desvio criminal, quase a uma consagração do desvio no tecido social.
P. S. A benefício do leitor eventualmente confundido por estas mal traçadas linhas, e que queira esclarecer-se sobre o assunto, deixo aqui algumas referências a consultar (a última acessível em linha): Alexandra Vilela, Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal, Coimbra (Coimbra Ed.), 2005, 138pp.; Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase de julgamento no actual processo penal português, Lisboa (AAFDL), 2000, 122pp.; Rui Patrício, O direito fundamental à presunção de inocência, 2005.
Albino Matos (Advogado)
Jornal do Centro de 10-02-2012

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