Vicente Jorge Silva, no SOL
Depois da Turquia, o Brasil: dois 'milagres' económicos abalados por acontecimentos que apanharam praticamente toda a gente de surpresa - e, sobretudo, os seus governos. Dois países apontados como modelos políticos para as respectivas regiões, o Médio Oriente e a América Latina, aparecem subitamente fracturados por inusitadas explosões sociais.
Afinal, a tão celebrada prosperidade económica turca não chegou para silenciar os protestos da rua contra as urbanizações megalómanas e o autoritarismo pró-islamista de Erdogan. Bastou o projecto de um centro comercial e a reconstrução de um quartel otomano num dos raros espaços verdes de Istambul para abrasar a Turquia laica e ocidentalizada contra um regime que, no entanto, beneficia da caução do voto popular.
Também no Brasil, onde o Governo de Dilma Rousseff desfrutava de altas taxas de popularidade, tudo começou por um pretexto aparentemente irrelevante: um aumento de 20 centavos nos transportes públicos. Mas, a partir daí, a cólera da rua estendeu-se às maiores cidades do país e 'descobriu-se' o outro lado da herança do lulismo. Um lado que permanecia encoberto pelo sucesso do plano de combate à pobreza (que fez ascender cinco milhões de brasileiros à classe média, embora vinte milhões ainda permaneçam nos patamares vizinhos da miséria).
Transportes públicos decrépitos, um sistema de ensino em crescente degradação e incapaz de garantir as bases elementares de acesso à universidade (extremamente elitista, aliás) e, por fim, uma rede de cuidados de saúde pública que mantém a indigência característica do Terceiro Mundo (com excepção dos hospitais privados a que só os ricos podem aceder). Além destes índices de um imenso atraso social - para não falar dos eternos problemas dos guetos habitacionais, do caos urbano ou das desigualdades chocantes que atravessam a sociedade brasileira continuaa florescer uma desenfreada corrupção política que teve como expressão culminante o escândalo do Mensalão, envolvendo algumas das figuras mais influentes do lulismo.
A orgia do poder levou personalidades com um passado notável de resistência à ditadura militar - como José Dirceu - a abandonarem os valores éticos e cívicos pelos quais se tinham batido - e sido torturados -, cedendo à tentação do cinismo mais repugnante na conduta política e ao tráfico de influências para enriquecimento pessoal. Depois das duras sentenças do Supremo Tribunal - presidido hoje pelo homem mais respeitado do Brasil, Joaquim Barbosa contra os cabecilhas e actores principais do Mensalão, os deputados tentaram alterar as regras constitucionais e aprovar o que os manifestantes chamaram de 'lei da impunidade', a qual transferiria a responsabilidade da investigação criminal do Ministério Público para a Polícia. Ora, foi precisamente sobre estes temas que se concentrou a mobilização popular, estimulada ainda pelas despesas faraónicas da construção de estádios e infra-estruturas para os próximos Mundial de Futebol e Jogos Olímpicos. Aliás, a coincidência da realização da Taça das Confederações expôs o contraste entre a tradicional euforia futebolística e a profunda depressão social cujos sinais quase ninguém soubera pressentir.
Dilma levou quase duas semanas para reagir ao movimento de fundo que incendiava o Brasil. Foram anulados os aumentos dos transportes e assegurado o investimento de uma elevada percentagem das royalties da exploração do petróleo e outras riquezas nacionais na reforma da Educação e da Saúde. Outra proposta presidencial de um referendo sobre a reforma do sistema político provocou surpresa e cepticismo, enquanto os protestos continuavam. Finalmente, os deputados já haviam antecipado a votação da 'lei da impunidade' e rejeitaram-na por uma maioria esmagadora (quando, antes das manifestações, se previa 70 por cento de votos a favor...).
O sobressalto de consciência que abrasou o Brasil testemunha, apesar de tudo, uma vitalidade democrática e uma abertura política que contrariam a reacção autocrática do regime turco. Mas, para além disso, a lição brasileira é também a de que os índices de expansão económica tão celebrados nos países emergentes podem constituir, em larga medida, uma miragem (aliás, o Brasil e a Turquia, tal como a índia, a Rússia e a China vêm sofrendo um abrandamento mais ou menos acentuado das taxas de crescimento). Quando a economia e a política se alienam da sociedade, a ameaça de incêndio pode manifestar-se a todo o instante. Eis o que nós, portugueses e europeus, devíamos aprender com o Brasil.
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