Política, segredo e justiça
A violação do segredo de justiça no processo Monte Branco, no qual o primeiro-ministro foi escutado, aparenta ser uma ameaça do poder judicial a Passos Coelho, afirmou há dias o bastonário da Ordem dos Advogados.Segundo Marinho e Pinto, a divulgação do teor das escutas em causa tinha todo o aspecto de "... ser um sinal, uma ameaça que a corporação judiciária dirige ao primeiro-ministro, num momento em que o Governo está a tomar medidas muito desagradáveis".
É certo que as afirmações partem de quem nos habituou a declarações nem sempre devidamente ponderadas mas, de qualquer forma, a acusação é suficientemente grave para nos preocupar. Até porque a voz do bastonário não está sozinha e, sobretudo, porque o que diz não parece completamente destituído de fundamento.
Face às revelações do teor de escutas telefónicas que envolviam um banqueiro, o primeiro-ministro e um ministro do seu governo, as reacções institucionais foram as do costume: a ministra da Justiça lamentou a violação do segredo de justiça e referiu a necessidade de rever a legislação em vigor, acrescentando que "uma alteração ao segredo de justiça não pode ser apenas do ponto de vista legislativo", mas terá também de implicar uma mudança "cultural" da sociedade portuguesa.
Seria mais uma das inúmeras alterações do regime do segredo de justiça dos últimos anos e, evidentemente, um verdadeiro absurdo. Não é uma alteração legal - provavelmente num sentido restritivo da liberdade de expressão - que vai alterar a realidade, sendo certo que a actual legislação é relativamente equilibrada, apesar de responsabilizar os jornalistas por um segredo que deve ser guardado pela justiça. Mas a ministra tocou noutro ponto que se prende com as preocupações do bastonário e, se calhar, de muitos de nós: a mudança cultural, não tanto da sociedade como dos operadores judiciários.
Saliente-se que neste processo, na fase em que se encontra, o acesso à informação que consta do mesmo por parte de terceiros é praticamente nula. Só o Ministério Público que dirige o inquérito, os seus funcionários e o juiz de instrução poderão ter sido a origem das fugas de informação.
Dir-se-ia que a nova procuradora-geral da República tinha a tarefa facilitada no inquérito que, como de costume, mandou de imediato instaurar. Mas assim não é e, com toda a certeza, o inquérito será arquivado sem ser deduzida qualquer acusação ou então só serão acusados os jornalistas que escreveram sobre o assunto. O bastonário da Ordem dos Advogados referiu também a sua falta de convicção na obtenção de quaisquer resultados práticos do inquérito, já que "quem vai investigar são os próprios magistrados e os próprios polícias que são os principais suspeitos de praticar o crime". Um processo que se anuncia à partida como inútil e em que se vai perder tempo e dinheiro.
Mas neste caso, talvez valesse a pena a Procuradoria-Geral da República ir um pouco mais longe nas suas indagações e procurar detectar as raízes culturais da violação do segredo de justiça, unindo o seu combate pela defesa da legalidade ao do bastonário da Ordem dos Advogados e ao da ministra da Justiça.
Segundo o jornal Expresso, a intercepção telefónica foi feita em Dezembro de 2011 e "por opção estratégica da equipa que investiga as suspeitas de corrupção, tráfico de influências e informação privilegiada, na privatização da REN e da EDP, só foi levada ao presidente do Supremo 11 meses depois, muito acima dos 15 dias previstos por lei".
Pessoalmente, as teorias da conspiração embora me fascinem não me seduzem. Custa-me a acreditar que a aparição, processual e pública, destas escutas corresponda a uma intencionalidade política, matando "dois coelhos de uma cajadada": o primeiro-ministro, que foi posto em causa, e a nova procuradora-geral, que foi obrigada a abrir um inquérito presumivelmente inútil. Mas, como muitos portugueses, gostaria de estar mais seguro de que, de facto, a política não interfere nas investigações criminais.
Ora, embora não se possam sindicar publicamente as opções estratégicas de uma investigação criminal numa fase secreta da mesma, nem por isso a procuradora-geral está impedida de saber que opções foram essas, até porque, como no caso do anterior primeiro-ministro, "calha" sempre quando as escutas são enviadas para validação pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, via Procuradoria-Geral da República, que se tornam conhecidas publicamente.
Há dados objectivos no processo que justifiquem que uma escuta efectuada em Dezembro de 2011 em que intervém o primeiro-ministro seja "desencantada" em Outubro de 2012? Não há violação da lei ao só agora ser pedida a sua validação? Quem teve acesso a essa decisão e movimentação processual? Cabe ao Ministério Público respeitar e fazer respeitar a lei?Público | 2012.11.02
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