A vigilância sobre a atitude dos magistrados perante leis iníquas é constante e felizmente, agora, dentro e, sobretudo, fora dos meios jurídicos e judiciários
1. Em “Juger sous Vichy”, Danièle Lochak, professora em Nanterre, questionava-se: “[…] constatamos que o juiz se encontra perante uma alternativa em forma de dilema: ele deve, em regra, obedecer às leis do Estado e aplicá-las […] mas há um momento em que o simples facto de aplicar a lei, e consequentemente de exercer o seu ofício, o torna cúmplice de actos moralmente reprováveis. […] A partir de que momento, exercendo ou pensando exercer normalmente a sua função, é que ele entra na via do compromisso?”
Lochak revela, seguidamente, o caso de Alessandro Garrone, magistrado italiano que, tendo exercido sob o fascismo, procurou, no início, interpretar as novas leis iníquas, de forma a minorar os seus malefícios. A partir de 1933 e da “nazificação” progressiva das leis italianas, a situação deteriorou-se, o que o levou a demitir-se da magistratura e depois à luta clandestina contra o regime.
As comunicações contidas no livro referem-se todas a situações extremas. Portugal, onde a jurisdição comum foi, por norma, isentada de aplicar as leis mais atentatórias dos direitos humanos, conheceu, todavia, no anterior regime, situações semelhantes, sem que tenham sido revelados exemplos como o do juiz Garrone.
2. Hoje quase todos os europeus vivem a coberto de legislação nacional e internacional de carácter constitucional que obrigue os magistrados a ponderar a “legalidade” das leis que invocam nas suas iniciativas processuais e sentenças.
A vigilância sobre a atitude dos magistrados perante leis iníquas é constante e felizmente agora dentro e sobretudo fora dos meios jurídicos e judiciários. Essa atenção tem contribuído para que a cultura do “positivismo” jurídico, que tantas consciências de magistrados agasalhou, não possa servir mais de desculpa para a condescendência com a violação dos direitos humanos acolhidos nas constituições e declarações internacionais.
A “crise” actual, não se exprimindo – ao menos por ora – de forma tão cruel e sanguinolenta como aconteceu na Europa antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, não deixa também de apresentar problemas graves à consciência jurídica e cívica dos magistrados.
A questão é tão mais crucial quanto, contraditoriamente, se assiste a uma constitucionalização mundial de um crescente número de direitos e garantias – normas que procuram salvaguardar a dignidade toda do homem – e, concomitantemente, se verifica uma “deslegalização” inquietante das fontes do direito e uma privatização da justiça e dos instrumentos capazes de dirimir os conflitos e afirmar os direitos.
Os instrumentos jurídicos que, no âmbito nacional e internacional, regulavam a vida e o comércio dos povos e das nações escapam, pois, agora, cada vez mais, à sua soberania e controlo.
Valores e interesses nunca sufragados e que de facto pouco têm a ver com os direitos humanos ou o bem comum – conceitos que deram corpo às modernas constituições e à forma como os cidadãos se concebem a si mesmos no seio dos Estados democráticos e de direito – são, entretanto, violentamente impostos à margem das constituições e da razão do direito, e dos tribunais.
É a noção civilizada de cidadania e o que ela implica de verdadeira soberania popular que está já em causa.
Aí reside, bem como na chaga injusta da morosidade, a questão actual da nossa justiça: “a alternativa, em forma de dilema” que se apresenta aos nossos magistrados.
Em nome dela, por sua causa, julgarão, e desta vez serão julgados.
Jurista e presidente da MEDEL
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