terça-feira, 4 de setembro de 2012

O sucesso da reforma da justiça e o valor político da verdade

Por António Cluny, publicado em 4 Set 2012  
Todos sabemos como é importante especializar áreas da justiça. Não basta para tanto, porém, dar um nome a uma jurisdição e reservar para ela uma competência específica
1. Um dos piores exercícios da política actual reside na apropriação de conceitos, que indiciam progresso e mais justiça, para justificar e desenvolver depois medidas de sentido contrário.
Certos conceitos, que parecem pressupor mais rigor e alterações generosas do ponto de vista político e social, são frequentemente usados para escamotear o sentido real de medidas visando apenas perpetuar situações que a invocação daqueles sugeriria, em princípio, deverem ser contrariadas.
Por exemplo:
“Reformas estruturais” significa hoje – quase sempre e apenas – contrariar verdadeiras reformas que instituíram direitos sociais para os mais débeis.
“Proceder a ajustamentos” indica, na verdade, mais um corte nas prestações sociais dos que mais delas necessitam.
“Acabar com o regabofe” não se dirige, de facto, à contenção dos ganhos excessivos dos que ocasionaram a “crise”, mas tão-só a rapar ainda mais os magros proventos dos que mais sofrem com ela.
Muito do descrédito da política – e a rápida quebra de confiança em alguns políticos – reside precisamente aí: na evidência da desconformidade do discurso com a prática que depois se tem e que, afinal, sempre se quis ter.
2. Vêm estas considerações a propósito das reformas que têm de ocorrer na justiça.
Dadas a sua especificidade e importância institucionais, importa não deixar contaminar a sua preparação, discussão e posterior concretização com tal tipo de truques e mistificações.
Vejamos algumas clarificações necessárias:
Todos sabemos como é importante especializar áreas da justiça. Não basta para tanto, porém, dar um nome a uma jurisdição e reservar para ela uma competência específica. É necessário, para que se possa falar de verdadeira especialização, que os seus magistrados tenham tido antes uma formação específica sobre as matérias das jurisdições especializadas e possam (devam) beneficiar, depois, de uma actualização regular sobre elas.
A sua escolha tem, pois, de obedecer a critérios predefinidos sobre a formação ajustada ao cargo, o que implicará uma redefinição nos critérios de gestão e no perfil da própria carreira.
Todos sabemos que é necessário criar mecanismos ágeis que propiciem um julgamento útil (em tempo) da pequena e média criminalidade. Sabemos também, contudo, que para tal não basta uma reforma processual. É necessária, além disso, uma orgânica judiciária compatível e, muitas vezes, vocacionada exclusivamente para essa nova forma do processo.
Todos sabemos que é necessário racionalizar os gastos – isso não é crime –, mas importa igualmente saber se as reformas visam, em concreto, apenas o corte da despesa ou se, pelo contrário, esse é apenas um efeito alcançado através de uma mais criteriosa e eficaz gestão de meios.
3. Tornar transparente a motivação concreta das reformas tem de ser o sinal distintivo de uma política singular, pois que dirigida ao cerne da democracia (enquanto Estado de direito) e, portanto, à identificação da comunidade nacional com as instituições que hão-de assegurar o pacto constitucional, garante da soberania.
Há e continuará a haver Portugal depois da troika.
O sucesso da reforma da justiça implica, por isso, que se ignorem os slogans dos “tudólogos” de serviço, que se congregue o saber e a vontade esclarecida dos que nela trabalham ou verdadeiramente estudaram os seus problemas e, acima de tudo, que se queira e saiba falar verdade sobre os objectivos e motivações das medidas que se querem concretizar.
Jurista e presidente da MEDEL

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