Todos
sabemos como é importante especializar áreas da justiça. Não basta para tanto,
porém, dar um nome a uma jurisdição e reservar para ela uma competência
específica
1. Um dos piores
exercícios da política actual reside na apropriação de conceitos, que indiciam
progresso e mais justiça, para justificar e desenvolver depois medidas de
sentido contrário.
Certos
conceitos, que parecem pressupor mais rigor e alterações generosas do ponto de
vista político e social, são frequentemente usados para escamotear o sentido
real de medidas visando apenas perpetuar situações que a invocação daqueles
sugeriria, em princípio, deverem ser contrariadas.
Por
exemplo:
“Reformas
estruturais” significa hoje – quase sempre e apenas – contrariar verdadeiras
reformas que instituíram direitos sociais para os mais débeis.
“Proceder
a ajustamentos” indica, na verdade, mais um corte nas prestações sociais dos
que mais delas necessitam.
“Acabar
com o regabofe” não se dirige, de facto, à contenção dos ganhos excessivos dos
que ocasionaram a “crise”, mas tão-só a rapar ainda mais os magros proventos
dos que mais sofrem com ela.
Muito
do descrédito da política – e a rápida quebra de confiança em alguns políticos
– reside precisamente aí: na evidência da desconformidade do discurso com a
prática que depois se tem e que, afinal, sempre se quis ter.
2. Vêm estas considerações
a propósito das reformas que têm de ocorrer na justiça.
Dadas
a sua especificidade e importância institucionais, importa não deixar
contaminar a sua preparação, discussão e posterior concretização com tal tipo
de truques e mistificações.
Vejamos
algumas clarificações necessárias:
Todos
sabemos como é importante especializar áreas da justiça. Não basta para tanto,
porém, dar um nome a uma jurisdição e reservar para ela uma competência
específica. É necessário, para que se possa falar de verdadeira especialização,
que os seus magistrados tenham tido antes uma formação específica sobre as
matérias das jurisdições especializadas e possam (devam) beneficiar, depois, de
uma actualização regular sobre elas.
A
sua escolha tem, pois, de obedecer a critérios predefinidos sobre a formação
ajustada ao cargo, o que implicará uma redefinição nos critérios de gestão e no
perfil da própria carreira.
Todos
sabemos que é necessário criar mecanismos ágeis que propiciem um julgamento
útil (em tempo) da pequena e média criminalidade. Sabemos também, contudo, que
para tal não basta uma reforma processual. É necessária, além disso, uma
orgânica judiciária compatível e, muitas vezes, vocacionada exclusivamente para
essa nova forma do processo.
Todos
sabemos que é necessário racionalizar os gastos – isso não é crime –, mas
importa igualmente saber se as reformas visam, em concreto, apenas o corte da
despesa ou se, pelo contrário, esse é apenas um efeito alcançado através de uma
mais criteriosa e eficaz gestão de meios.
3. Tornar transparente a
motivação concreta das reformas tem de ser o sinal distintivo de uma política
singular, pois que dirigida ao cerne da democracia (enquanto Estado de direito)
e, portanto, à identificação da comunidade nacional com as instituições que
hão-de assegurar o pacto constitucional, garante da soberania.
Há
e continuará a haver Portugal depois da troika.
O
sucesso da reforma da justiça implica, por isso, que se ignorem os slogans dos
“tudólogos” de serviço, que se congregue o saber e a vontade esclarecida dos
que nela trabalham ou verdadeiramente estudaram os seus problemas e, acima de
tudo, que se queira e saiba falar verdade sobre os objectivos e motivações das
medidas que se querem concretizar.
Jurista e presidente da MEDEL
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